Um olhar diferenciado sobre costumes e peculiaridades gaúchos é a proposta da série Beleza Interior, que percorre um destino diferente do Rio Grande do Sul a cada sábado de 2011. A cidade visitada na edição de hoje é São Luiz Gonzaga, terra de 34,5 mil habitantes, distante 465 quilômetros de Porto Alegre, berço do músico Pedro Ortaça, lenda da trova missioneira..
Põe o cavalo a correr.
Se é fiel, ele volta.
Se é triste, ele morre.
Se é vento, ele sonha.
Enche o pulmão para ler
e não se afogar na neblina.
Depois de Jayme Caetano Braun,
Noel Guarani e Cenair Maíca,
o único que está vivo
é Pedro Ortaça, um dos quatro
troncos do protesto, arisco,
febril, nosso estado pelo avesso.
Pedro Ortaça não é um nome,
mas uma condição missioneira.
Payador, bruxo solto, árvore
à sombra das catedrais jesuíticas.
Pedro Ortaça é uma joia da ofensa,
sessenta e nove anos de bem com a maldade,
quando canta sua voz é outra, tão diversa
da sua, usa a aspa do cavanhaque
a traduzir o Rio Uruguai.
Baixa em si o espírito dos Sete Povos,
pomba-gira é Sepé Tiaraju,
índio de secreto mundo
exorcizando massacres sem fim.
A terra colorada é o poncho que cobre a ave
de São Luiz Gonzaga. Por favor, com licença,
Pedro Ortaça é a cidade reunida na estância,
aquece os olhos como quem serve o mate:
não deixa esfriar a raiva,
o coração sempre está além
daquilo que se entende,
só pede perdão lutando.
O maior riso surge do desespero,
a dor brilha mais do que ferro puro
mais do que carência de espelho,
mais do que dente de ouro.
Pedro Ortaça não é flor que se cheire,
é pedra andando, campo encilhado,
desarruma o pago e os limites
tocando violão com arames das cercas.
Ostenta o bigode afiado
contando aflições antigas
de um jeito alto, desaforado,
próprio do galpão de amigos.
Não foi fácil desatar o grito,
montar guarda em centenas de letras.
Recebeu de um pescador sua faca;
do avô Quintino, o acordeão;
da mãe Cândida, as modinhas fraseadas;
e do pai Alberto, a fome de pirão e pão.
Os nervos custaram a desmanchar
na carne dura, magra, cigana.
Por mais que se monte banda,
por mais que se apresse o dom,
a montanha demora a devolver o som.
Vendeu sangue para conseguir viagem,
quatrocentos gramas de veia
foram seus bilhetes de trem.
Ele bem sabe, o verso faz história.
Pedro Ortaça é uma figura esguia,
de origem ilusória, mínima,
brincava para esquecer a falta de comida.
Passava acordado de madrugada
espiando o baile dos adultos.
Mais do que o café do medo,
não dormia pela beleza dos timbres.
Tirou a morte a dançar e mascou todo gengibre.
Não teve cadeira de letrado,
não botou sua honra no penhor,
não procurou nada emprestado,
não disse amém ao senhor.
Ortaça, feito de taipas e relâmpagos,
transforma as ruínas em tambores,
veste crepúsculos, manto guarani aos ombros,
suas mãos escrevem galopes.
Ortaça, Ortaça, a chuva não cala o fogo.
Quem inventa nunca chega atrasado
na lembrança. A guitarra é campo santo,
não terminam os ouvidos de pampear.
Quem inventa nunca chega atrasado
no parto. A rédea é aceno do canto,
não terminam os ouvidos de guerrear.
Ortaça, Ortaça, Ortaça já viu o demo,
o redemoinho, no meio da colheita:
nuvens negras de gafanhotos
roubaram sua infância.
Ninguém mais assusta Pedro Ortaça,
ele jamais duvidou do instinto
que vem do passado cancioneiro.
Não desistiu de ser bicho,
da valentia de sua gente,
de brigar por improviso, matreiro.
Pois aquele que nada tem, nada deve,
nada teme, vive por inteiro.