Ka é árvore
Kakane é laranja
A menina indígena Taina da Silva, oito anos, transforma sua língua caingangue em português. Com orgulho, impõe a mão esquerda no quadro negro. Desperta o interesse de seus colegas, que viram o rosto a cada nova torção do giz branco.
Kamé é sol
Kanhokre é lua
Taina depende da disposição aventureira de duas professoras para continuar aprendendo.
Loreni Graebin, 47 anos, e Nely Maria dos Santos, 54 anos, moradoras de Rodeio Bonito, cidade de 5,7 mil habitantes, situada a 413 quilômetros de Porto Alegre, são as discretas heroínas do ensino.
Por um salário simbólico, atravessam o perigoso Rio da Várzea para lecionar na aldeia caingangue. Vestem os coletes salva-vidas e assumem um cantinho da canoa verde da Funai, embarcação ainda dependente do remo e do temperamento da correnteza.
- Necessário prestar atenção: para não ser atropelado por um boi morto ou um tronco perdido nas águas - avisa Loreni.
Loreni é a diretora da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Francisco Kajero, que atende 182 alunos, do outro lado da margem, em Liberato Salzano.
Nely é coordenadora pedagógica e ampara a aldeia de 124 famílias do povoado caingangue, procurando convencer crianças e adolescentes a não abandonar a escolaridade, apesar dos hábitos diferentes e da gravidez precoce (meninas de 12 anos costumam casar e ter filho).
Ambas têm no currículo mais de três décadas de magistério. Também são as únicas do quadro docente de 15 professores, que passam o dia inteiro na escola.
Poderiam estar numa situação mais cômoda, sem correr riscos, sem penar por ônibus de uma em uma hora, sem enfrentar a correnteza de 250 metros, sem percorrer a pé mais de um quilômetro de mata fechada, mas são incansáveis. Pelo prazer de explicar o mundo, continuam acordando às 7h e regressando às 17h.
- Meu marido já cansou de perguntar por que não desisto. Ensinar é um vício, é se apaixonar dentro do amor - afirma Loreni.
- Salto alto na aldeia é galocha, as calças terminam barrentas e não se usa tênis. Eu me envaideço de frases - explica Nely.
Quando não há nenhum morador caingangue esperando na beira para levá-las, as professoras tomam o barco e remam. Não ficam contando as horas.
- O espetáculo tem que continuar - diz Nely.
- Uma vez quase morri, o rio estava crescido e me levou para baixo. Não adianta gritar, mantive a calma e esperei socorro, até que me encontraram presa nas folhagens de Rodeio Bonito.
O perigo é amenizado pela admiração dos alunos, sempre puros, carentes e leais. Houve também melhorias na infraestrutura em 2010. As ocas e galpões tomaram a forma de prédio com ventiladores.
- Os índios têm um respeito formidável pelo conhecimento, ser professor não é visto como uma profissão, mas como um dom, um traço divino - esclarece Nely.
- Eles nos agradecem por estar com eles, é algo da escola de antigamente, de devoção a quem transmite ideias - pontua Loreni.
Unhá é boa/bom
- É a palavra se olhando no espelho - confessa Taina, completamente feliz com sua observação.
- Então vamos penteá-la! - completa Nely.
Taina escreve em letra lenta e caprichada, acentuando as tranças nos dois i:
- Sivi
Nely e Loreni se entreolham e perguntam o que é aquilo:
- Vocês em caingangue: Lindas!
Notícia
Beleza Interior: Discretas heroínas
Em Rodeio Bonito, ZH acompanhou as dificuldades de duas professoras para ensinar crianças indígenas
Fabrício Carpinejar
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