A cada sábado de 2011, a série Beleza Interior percorre uma cidade diferente do Rio Grande do Sul à procura de histórias inusitadas, personagens inesquecíveis e pontos de vista especiais. Conheça hoje o menino que cresce na terra da infância de Iberê Camargo.
Iberê Camargo (1914-1994), um dos maiores pintores brasileiros, nasceu e viveu os seis primeiros anos em Restinga Seca, cidade de 15 mil habitantes, localizada na região central do Estado, a 257 quilômetros de Porto Alegre.
Foi o período de gestação de suas pinturas, determinante para formar os principais símbolos de suas pinceladas.
De Restinga Seca, ele retirou os clarões do amanhecer, os carretéis, as rodas melancólicas, os postes de ferro, a solidão do cerro.
"As figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias da minha infância", escreveu.
>> Acompanhe a série no Facebook!
Restinga Seca é um quadro que não foi pendurado de Iberê Camargo. Ele viveu com seu pai Adelino e sua mãe Doralice na Estação da Viação Férrea até 1920. Aprendeu a rabiscar, sentado nas lajes frias da varanda, retratando a rotina do maquinista.
A paisagem é exatamente a mesma de Paulo Henrique Penteado Fernandes, cinco anos, criança que ocupa hoje o quintal de Iberê, em pleno recinto ferroviário.
Pela janela, Paulo Henrique tem a chance de reprisar os olhos do artista: a caixa dágua, a sanga afoita pela chuva, o rancho e as vacas magras, os trilhos e os ninhos de neblina na grama. A semelhança se estende até na companhia de uma caturrita, a Nicota ("a única que pode falar palavrão em casa", confessa o pequeno Paulo).
É uma generosa segunda encarnação da pintura.
O que Paulinho - como é chamado pelos pais Diose, 24 anos, oleiro, e Tanhyana Rodrigues, 26 anos, dona do lar - prefere fazer é desenhar. Mais do que assistir televisão. E sozinho. Sem parente controlando o traço por cima das páginas.
- Quando alguém espia o desenho, o desenho muda - explica.
Ainda na pré-escola, sem saber ler e escrever, criou um diário ilustrado de sua vida. Tudo o que acontece lá fora também acontece em sua imaginação.
Cada folha é dedicada a um personagem. Ou é a saudade de arame farpado das irmãs Daniele, oito ano, e Maria Paula, três anos, que residem com a avó, ou é uma boneca abraçando uma árvore, ou é um patinho bebendo o céu, ou é um mato caminhando de costas, ou é o próprio Paulo se equilibrando na chaminé da locomotiva com a boca inchada.
- Por que a bochecha enorme?
- É o feijão, o arroz e o bife feitos por minha mãe. A bochecha é uma panela.
Nenhum movimento da rua escapa de suas sobrancelhas exclamadas. Além do "bicho-papão escondido na casa ao lado onde não mora ninguém", sua predileção está concentrada nos pés das galinhas. Tem uma série inteira dedicada a elas.
Qualquer coisa é passível de comparação. A pipa é seu cachorro Maguila com coleira. O fogão a lenha é um vagão perdido dentro da cozinha. A caixa dágua (que Iberê não cansava de olhar) é um passarinho grande de castigo.
O menino tenta nomear o que enxerga, às vezes fala errado, às vezes fala estranho e não é compreendido.
- Ele é agitado por dentro. Conversa sozinho, conversa dormindo, conversa com os próprios dedos - esclarece Tanhyana.
Como todo menino, não tem noção do tempo. Acredita que a vida dura um final de semana. Mas sequer sua mãe tem uma ideia precisa do calendário.
- É a magia do lugar. O relógio era o trem, mas atualmente é de carga e não aparece em horários certos. Não temos pressa de viver.
Paulinho concorda com o riso. Diz que é fácil não morrer, basta grudar um dia no outro com cola Tenaz.
- Será pintor quando crescer? - pergunto.
- Não, ele responde. - Vou ser príncipe.