Há 10 anos, dia 1º de agosto de 2000, era notificada a primeira suspeita de foco de febre aftosa em Joia. Após uma década, ZH retornou ao município para mostrar como os personagens que enfrentaram o episódio se recuperaram e reergueram a cidade.
Em site especial, confira áudios, fotos, vídeos e uma linha do tempo do combate à aftosa no RS.
A perseverança fez a gente do município de Joia poder voltar a sorrir e hoje contar com orgulho que venceu o trauma da febre aftosa. O episódio que há 10 anos sacudiu a rotina da cidade do noroeste do Estado ficou para trás, enterrado com os 11.086 animais sacrificados a tiros em nome do reconhecimento internacional da sanidade do rebanho gaúcho.
Relembrar a invasão, da noite para o dia, de quase mil forasteiros de forças policiais e sanitárias a partir do dia 23 de agosto de 2000 ainda emociona as famílias, mas não vergou a irresignação típica dos colonos que se instalaram no início do século passado na região. As forças foram recobradas e o abalo econômico e psicológico sobrepujado.
Fonte de sustento da maior parte das 600 famílias de minifundiários atingidas, a produção de leite ilustra como Joia voltou a brilhar. O volume diário alcança hoje 76 mil litros, mais do que o dobro do período anterior à matança. E é quase 10 vezes mais do que no ano seguinte, quando boa parte dos campos do município de 8,2 mil habitantes ainda estava vazia como consequência da maior e mais rumorosa operação de emergência de sanidade animal já assistida por uma cidade no Estado.
Uma década depois, o valor do orçamento do município subiu mais de três vezes e meia, para R$ 17,1 milhões.
- A recuperação veio por persistência e coragem dos agricultores - afirma o prefeito de Joia, Jânio Andreatta, um dos atingidos à época e que hoje diz ter um plantel de genética superior ao que perdeu.
Uma série de pecularidades tornou Joia o mais ruidoso episódio de febre aftosa enfrentado no Brasil, além dos aspectos sanitários e econômicos. O caso trouxe frustração, incitou ainda mais a disputa política e deixou sem resposta o mistério de como o vírus chegou à cidade.
Nos dias que antecederam a confirmação dos focos, foram espalhados por rodovias outdoors que comemoravam a vitória do Estado sobre a doença, maior barreira à exportação de carne. Na mesma semana, teria início a Expointer programada para ser a celebração da sanidade do rebanho gaúcho, quatro meses depois da última etapa de imunização. Estava aberta a contagem de um ano para o reconhecimento internacional de livre de febre aftosa sem vacinação e a consequente abertura do mercado mundial para o Rio Grande do Sul.
O desapontamento teve ainda um ingrediente histórico. O Estado foi o pioneiro no combate à doença e o esforço empreendido desde a década de 1960 para alcançar o novo status, que parecia estar próximo, começava a ruir.
A virada no epicentro do embate
Dono da propriedade apontada como o primeiro foco de febre aftosa em Joia, Tranquínio Menegassi, 69 anos, tem hoje a convicção de ter superado o revés e acumulado patrimônio ao revisitar os últimos 10 anos. Sem esmorecer, enxergou nos grãos o atalho para a virada após os meses de proibição de reintroduzir animais nas propriedades até a certeza da eliminação do vírus.
As lembranças da juventude, quando se familiarizou com a doença e tratava os animais com soluções caseiras aprendidas com os mais velhos, deram a certeza ao agricultor. Eram de aftosa os sintomas que notou em uma de suas novilhas no dia 29 de julho de 2000, diagnóstico confirmado 26 dias depois por um laboratório do Ministério da Agricultura em Recife, apesar de um veterinário local ter examinado o animal e notificado a suspeita dia 1º.
Menegassi vivia da produção de leite e de 30 hectares de soja que plantava em área arrendada. Ficou preocupado por não ter a renda mensal do leite. E com medo de que o culpassem pelo aparecimento da doença, notícia que pôs a pecuária gaúcha em reboliço e deixou a região sitiada por 72 barreiras que controlavam a circulação de pessoas, animais e mercadorias. Enquanto Joia ainda vivia o caos, Menegassi firmou a certeza de investir na lavoura a indenização que receberia pelos animais sacrificados.
- Com o dinheiro, comprei um trator novo - conta Menegassi.
Os 30 hectares de soja se transformaram em 140. Ao longo da década, aumentou a frota de maquinário e construiu um galpão de 575 metros quadrados para guardar os insumos, os dois tratores, uma plantadeira, um pulverizador adquirido em 2009 e a colheitadeira dos anos 1980 que planeja trocar.
Com a ajuda de Menegassi e do fecundo solo vermelho, Joia experimentou nos últimos 10 anos um salto na soja. A área cresceu 76%, para 76 mil hectares, e a tecnologia permitiu um aumento de rendimento médio de 28 para 40 sacas por hectare, mostram dados da Secretaria Municipal da Agricultura.
Vizinho de Menegassi na localidade de São Roque, epicentro do combate à aftosa, Aquiles Della Flora, 60 anos, foi o primeiro a ter os animais mortos a tiros na noite de 25 de agosto de 2000, uma inesquecível sexta-feira de chuva fina. Della Flora preferiu não retornar mais à produção de leite, mas semear o futuro cultivando soja e milho no primeiro verão.
- Sem os animais, isso aqui virou um silêncio profundo - rememora Della Flora, hoje, aposentado.
Com a garantia de eliminação do inimigo invisível, voltou a criar suínos, costume arraigado, para fazer e vender salame, banha e carne, além de elaborar um vinho colonial cobiçado pelas cercanias.
Renda do leite alimenta o comércio
A renda do leite voltou a nutrir o negócio do empresário Lucimar Furlan, que viu as vendas de sua loja de roupas e calçados reagirem nos últimos três anos. Foi quando a atividade ganhou novo vigor e o dinheiro do campo tornou a respingar com força na cidade. Com a clientela retornando às compras, investiu no negócio.
- A minha loja, com a malharia, funcionava em 50 metros quadrados. Hoje são 200 metros quadrados - ilustra.
Há 10 anos, sem o dinheiro que movia a economia pela suspensão da coleta do leite para evitar a disseminação da aftosa, Furlan sentiu no bolso a queda de 70% nas vendas e a alta de 40% dos cheques sem fundo.
- O comércio local sobrevive das compras dos pequenos produtores de leite. Naquela época as pessoas só entravam na loja para conversar - lembra Furlan.
Terra fértil para sonhos
Vive contente e próspero no assentamento Ceres o agricultor Ademir Antunes dos Santos, 57 anos. Feliz porque hoje tem como vizinhos cinco de seus sete filhos, oito netos e ainda colhe o fruto do suor em lavouras de soja, no verão, e azevém, no inverno. Mas nem sempre foram venturosos os dias de Santos.
Em 4 de setembro de 2000, ZH noticiava a suspensão de sete feiras agropecuárias na região como medida preventiva - 16 dias depois, a determinação valeria para todo o Estado. Na mesma página, Santos e a neta, Renata Santos Prestes, à época com três anos, apareciam com a vaca Dengosa. Viviam um clima de despedida com a última ordenha do rebanho a ser sacrificado no dia seguinte. Com a inocência das crianças, a pequenina perguntava se amanhã haveria mamadeira.
- Hoje, planto 50 hectares de soja com meus filhos. Tenho carro, uma moto novinha e algumas economias - contabiliza Santos, que nos últimos anos conseguiu reunir a família graças a permutas com colonos de outros assentamentos no Estado.
Com a experiência de combate a focos de aftosa país afora, o diretor do Departamento de Saúde Animal do Ministério da Agricultura, Jamil Gomes de Souza, aponta o episódio de Joia como diferente:
- Em Mato Grosso do Sul, os animais são só números. Em Joia, sustentavam as famílias e tinham nome. Era como uma despedida. Comovente.
Como tantas outras, essa é a história da família do estudante Cleiton Pedroni, 15 anos, que mora em uma propriedade de 6,5 hectares a 300 metros do local onde foram abertas enormes valas para enterrar os milhares de animais sacrificados a bala por atiradores da Brigada Militar. A família, que conviveu com os estampidos do rifle sanitário, 10 anos depois deposita esperanças em Cleiton. Estudante da sétima série e com o dom de lidar com a terra, o menino alimenta o sonho de ser agrônomo e ter um milharal viçoso igual ao que costuma desenhar.
- Quero dar uma vida melhor para os meus pais - explica Cleiton.
Cleiton tinha cinco anos quando, no dia 29 de agosto de 2000, técnicos da Secretaria da Agricultura do Estado pediram para a família deixar por algumas horas a propriedade para não assistirem ao carregamento das setes vacas - entre as quais, a preferida era a Bonita. A saudade de Bonita foi tão grande que outra vaca parecida, ganhou o mesmo nome e é o novo xodó da casa.
O episódio acirrou a disputa política entre o governo do Estado, comandado pelo PT, a oposição e o governo federal. Foram intensas as trocas de acusações principalmente entre o então secretário da Agricultura, José Hermeto Hoffmann, o governador Olívio Dutra, e o ministro da Agricultura, Pratini de Moraes. Brasília apontava a origem dos focos em assentamentos dos MST e falha do Estado em aplicar os recursos federais na defesa animal. Porto Alegre indicava o maior proprietário de terras da região, que teria contrabandeado touros do Paraguai, como suspeito número 1.
A demora do laboratório do Ministério em Recife em confirmar a aftosa elevou ainda mais a temperatura. Apesar de o primeiro foco ter sido notificado dia 1º de agosto e os três seguintes dia 11, as análises iniciais deram resultado negativo, com a confirmação da doença apenas dia 23, um intervalo que pode ter colaborado para a disseminação do vírus. Dez anos depois, as desconfianças ainda são mútuas.
- Acho que houve muito jogo de cena. Estranhamente, estes laudos deram negativo até o dia 22 de agosto e dia 23 foi anunciado como positivo. Tem um mistério no meio disso - diz Hoffmann.
O ex-ministro Pratini revela que o caso será um capítulo de um livro que pretende escrever.
- Um dia eu vou contar essa história, abrir detalhes. Foi um episódio triste do sistema sanitário brasileiro.
Caminho lapidado pela superação: Joia 10 anos após o trauma da febre aftosa
Em 1º de agosto de 2000, era notificada a primeira suspeita de foco da doença na cidade
Caio Cigana
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