É um efeito comportamental da pandemia: confinados em casa para deter a propagação do coronavírus, casais estão redescobrindo um ao outro. Para o bem (com mais tempo para a intimidade, por exemplo) ou para o mal – "a toalha molhada deixada em cima da cama tem uma intensidade maior", diz a psicóloga Mara Lins, 53 anos, diretora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi).
Mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutora em psicologia clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Mara está acompanhando, em seu consultório online, os impactos familiares da quarentena. Como lidar com as crianças e os adolescentes, por exemplo, tão acostumados a uma rotina de escola, amigos e passeios? Como controlar as emoções para que a casa não se torne um ambiente mais estressor? Como enfrentar a saudade imposta e com a preocupação pela saúde dos familiares?
A própria Mara, casada e mãe de três filhas, vive essa última situação.
— Uma é publicitária e já mora sozinha. Falamos com ela por aplicativo. Uma é médica e faz residência em um hospital de Blumenau. O coração aperta, mas é seu trabalho — pondera a psicóloga. — A terceira estuda Administração e mora com a gente. Esta estou apertando diariamente!
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por telefone:
Uma das consequências da quarentena é que os casais se viram obrigados a passar mais tempo juntos. Essa situação já virou tema de conversa nos consultórios online?
Certamente. Ouvimos relatos que são em parte jocosos, em parte sérios. Não estamos acostumados a ficar 24 horas com a mesma pessoa. Temos outras atividades, o trabalho, o esporte, o lazer com os amigos... Ficar tanto tempo junto é um fator de estresse a mais em um cenário dominado por este fantasma, como eu chamo a doença, pela incógnita, pela perspectiva de um forte impacto econômico. As pessoas podem estar angustiadas, com medo mesmo. Mas o mundo online oferece recursos. Se por um lado tem a informação que assusta, por outro tem a informação que esclarece. E tem o contato virtual com os amigos, aplicativos de mindfullness para praticar a respiração profunda, que também é uma terapia para um dos alvos do coronavírus, os pulmões. Há outros meios: manter uma rotina, como a hora de acordar. Colocar uma roupa, não ficar de pijama o dia todo. Existe a mente racional, a mente emocional, muito ativa no contexto que estamos vivendo, e tem a mente sábia, que consegue acessar as outras duas. É hora de tomar uma perspectiva, como se estivéssemos assistindo a um vídeo, e decidir o que fazer. Esse é um período em que cabe uma metáfora triste que ouvi: agora a gente sabe mais ou menos o que é ser um passarinho na gaiola. Vamos ficar bicando quem está junto?
Por conta dessa aproximação compulsória, há quem diga que, daqui a nove meses, veremos uma explosão de natalidade. Outros acham que pode haver um aumento no número de separações. Qual é a sua opinião?
Acredito que podemos ver as duas coisas acontecerem. Sim, as relações sexuais podem estar mais constantes, mas, como disse, a convivência se torna mais delicada. A toalha molhada deixada em cima da cama tem uma intensidade maior. As pessoas ficam mais irritadiças. Há muitas emoções negativas no ar, ocorre uma desregulação emocional nos casais. Às vezes, se for preciso, o negócio é se trancar no banheiro para ter seu espaço e se organizar. Tomar um banho longo, comer algo gelado ou quente, que puxa a tensão da mente para o corpo. A quarentena convida também a olhar para dentro. Nossos olhos são virados para fora, então, nos casais, é muito comum achar que quem está errado é o outro, porque não conseguimos olhar para dentro. Cabe agora, mais do que nunca, fazer esse exercício. Aproveitar que estamos os dois na gaiola para falar sobre isso. Usar esse tempo a mais não só para a intimidade sexual, mas também para a afetiva. É uma questão de saúde mental poder conversar sobre nossas preocupações, sobre o pai, a mãe, o emprego. Se não, o copo transborda.
Outra situação imposta pela quarentena é a da divisão das tarefas domésticas.
Tende a dar briga também (risos). Um lava a louça de uma maneira, outro não lava na mesma hora. É preciso haver muita tolerância, porque cada um vai fazer as tarefas do seu jeito. Vale a pena comprar essa briga? O melhor é canalizar essa energia para algo positivo. Uma das coisas trazidas de volta pela quarentena é o hábito de fazer a comida. Que tal relembrar qual é a comida de que o outro gosta, qual é o tempero? É um tempo para a família.
Os casais com filhos também estão tendo de dar mais atenção às crianças, equilibrando, aqueles que seguem trabalhando, a rotina do home office com as brincadeiras e os cuidados. É um momento que, mais para frente, pode trazer benefícios para a família, não?
Dois pontos. Primeiro, crianças acabam sendo mais um fator de estresse, porque têm uma energia muito grande.
São tigres na gaiola.
(Risos) Sim! Não estão acostumadas a esse confinamento. Sentem falta da escola, dos amigos, dos parques, da rua etc. Se há essa opção, o rodízio entre os pais é o ideal, para o adulto poder recarregar a bateria. E, se estiver em home office, o outro precisa assumir mesmo, para que quem estiver trabalhando possa se concentrar. É hora de ser criativo, de inventar brincadeiras. Vi uma em que bolaram desafios em um corredor da casa, virou o corredor ninja. Vale recuperar brincadeiras que não se faz mais, largar um pouco de mão a tecnologia, que é útil, sim, mas não precisa ser o único recurso. A parte boa do confinamento é o resgate do contato, do olho no olho, da interação entre pais e filhos.
Um dos pontos centrais da pandemia é a proteção aos idosos. Por outro lado, há pais que devem estar ansiosos para voltar ao trabalho, porque é a única forma de sustentar a família. É um dilema que gera memes trágicos como aquele da menina que pergunta ao pai "onde está a vovó" e ouve como resposta que "tivemos de escolher a economia". Como abordar essa questão com os filhos?
É difícil. É o grande dilema que estamos vivendo. Sim, tem o lado da saúde. Sim, tem o lado da economia. O desemprego já está acontecendo, e a parada interrompe uma cadeia que acaba por atingir também a saúde. Soube de uma empresa de álcool gel que está sem os potes para armazenar porque a fábrica de plástico está em quarentena. É um dilema muito difícil de resolver. É tudo desconhecido para todos, também não há políticas públicas adequadas para dar conta desta crise. Qual é o caminho do meio? O que a mente sábia diria?
É importante que as crianças saibam da gravidade da covid-19?
Temos de seguir os especialistas: é uma doença extremamente perigosa para os idosos. Sendo assim, estes merecem, ou melhor, têm o total direito à proteção. Nesses casos, não há opção de escolha, como para pessoas que não estão nos grupos de maior risco. Deve-se conversar com os filhos de uma maneira que compreendam, numa linguagem acessível, ao mesmo tempo que com cuidado para não assustá-los. Deixemos a ansiedade maior para os adultos. Um ponto difícil, por exemplo, é se há uma relação complicada entre a geração dos mais velhos com seus filhos adultos, temas não resolvidos, ressentimentos guardados... Se estivéssemos num período "normal", a vida seguiria seu curso conhecido. Mas agora falamos de cuidados, de ajuda, e os mais velhos, por mais que tenham feito coisas que nos machucaram, merecem proteção. Meu marido fala uma frase que me cala muito: "A velhice, por si só, já é um pedido de perdão".
É hora de exercer empatia, bondade, gentileza, mesmo que confinado: o que posso fazer? Ligar para alguém já dá um quentinho no coração do outro. Procurar aquela amizade antiga para saber como está. Estamos mais sensíveis, e essa sensibilidade poderia ser aproveitada para o lado do bem e do amor.
E o adolescente? Como lidar com sua característica rebeldia?
O adolescente ainda está em desenvolvimento. O lobo frontal, parte do cérebro que responde pelo juízo crítico, por saber o que posso ou não fazer, só vai ficar pronto ali pelos 20 anos. Então, neurologicamente, o adolescente é mesmo sem noção. Os adultos da casa precisam ter paciência, porque o adolescente vai estar mais impaciente. Suas diversões foram restritas. Ao mesmo tempo, ele já tem mais facilidade no mundo online, pode extravasar mais por ali, manter o convívio com os amigos e as relações mais afetivas. Claro que a gente pode estabelecer um limite de horas online.
Falando nisso, em limite, quarentena é um período em que se pode ser mais flexível?
Claro. O cérebro precisa de rotina para se organizar, mas as coisas não precisam ser iguais às que eram antes da quarentena. Que seja às 14h o almoço, e não mais ao meio-dia. Pode ficar de pantufas, mas não precisa ser todos os dias. Dá para achar um equilíbrio. É um momento de pensar na vida. A gente não precisa só sofrer. Pode ver nossas forças e nossos recursos, as pessoas que são importantes para nós. É hora de exercer empatia, bondade, gentileza, mesmo que confinado: o que posso fazer? Ligar para alguém já dá um quentinho no coração do outro. Procurar aquela amizade antiga para saber como está. Estamos mais sensíveis, e essa sensibilidade poderia ser aproveitada para o lado do bem e do amor.