Ele não vai desfilar na cerimônia de abertura dos Jogos de Tóquio, não dormirá na Vila Olímpica, tampouco pisará em áreas de competição. Nem mesmo viajará ao Japão para acompanhar as disputas a partir do próximo dia 23. Mas as digitais de Antônio Carlos Pereira, o Kiko, estão indelevelmente gravadas nos quimonos de um quinteto que representará o judô brasileiro no maior evento esportivo do mundo.
Treinador da Sogipa há 35 anos, 28 dos quais como chefe da equipe, o sensei comemora neste ano uma marca expressiva em uma carreira repleta de realizações: nunca antes o clube gaúcho havia qualificado tantos judocas para uma mesma Olimpíada.
Depois de ter classificado três judocas em cada uma das três últimas edições dos Jogos, desta vez a fábrica de talentos dos tatames levará a Tóquio Daniel Cargnin (66kg), Ketleyn Quadros (63kg), Maria Portela (70kg), Mayra Aguiar (78kg) e Rafael Macedo (90kg). E a seleção ainda poderia ser reforçada com mais dois sogipanos. Isso porque tanto Aléxia Castilhos (63kg) quanto Leonardo Gonçalves (100kg) estão dentro da faixa de qualificação no ranking internacional, mas não poderão competir em Tóquio porque cada país pode inscrever nos Jogos apenas um nome por categoria de peso.
Os cinco judocas representam praticamente 40% da equipe olímpica do Brasil — apenas o tradicional clube Pinheiros, de São Paulo, teve mais judocas chamados (seis dos 13 atletas das seleções masculina e feminina).
Às vésperas de mais uma Olimpíada, Kiko vê a consolidação de uma trajetória iniciada nos anos 1980. Com pouco mais de 20 anos de idade, percebeu que não teria futuro como atleta de alto nível. Então, começou a dar aulas de judô para "ganhar um dinheirinho". Ao mesmo tempo, em atividade voluntária vinculada a um projeto social, também iniciava no esporte estudantes de uma escola pública de Porto Alegre.
— No início da minha carreira, eu tinha o que pouco treinadores e clubes tinham: números. Quando fui para a Sogipa, já treinava 400, 500 alunos. Formar atleta é como uma mãe que educa o filho. É preciso dar atenção, carinho. Esse foi meu mérito — relata Kiko.
Em 1993, assumiu o posto de treinador principal da equipe de judô da Sogipa. Na Olimpíada seguinte, em Atlanta 1996, o peso leve Alexandre Garcia tornou-se o primeira judoca da história da clube a competir nos Jogos. Em Sydney 2000, Mariana Martins foi pioneira no judô feminino gaúcho.
Em Atenas 2004, nenhum atleta conseguiu a vaga, mas a partir de então o clube não apenas teve sempre representantes nos Jogos, como também subiu de patamar no cenário nacional e internacional. A começar por João Derly, primeiro campeão mundial do judô brasileiro, em 2005 (em 2007, o gaúcho conquistou o bi).
— Eu o considero quase como um pai. Ele vive intensamente o sonho do atleta. Se tiver de acordar às 5h para treinar, ele vai acordar. Se tiver de fazer dieta junto com o atleta, ele vai fazer também — diz os ex-judoca, que teve em Kiko seu único treinador na carreira, primeiro na base, a partir dos sete anos, na Escola Rio Branco, e depois no alto rendimento, na Sogipa.
— Com o título do Derly, passei a ser respeitado como técnico. Judocas de outros clubes, de fora do Estado, queriam treinar comigo — diz.
De fato, depois da conquista do pupilo, o paulista Tiago Camilo, prata nos Jogos de Sidney, foi um dos "forasteiros" contratados pelo clube gaúcho. E pelas mãos de Kiko, em 2007, sagrou-se campeão mundial e conquistou a primeira das quatro medalhas olímpicas do judô da Sogipa, o bronze em Pequim 2008.
Neste ciclo olímpico, Ketleyn Quadros (a primeira mulher a conquistar medalha olímpica para o país na modalidade, em 2008), trocou o Minas Tênis Clube pela Sogipa. Depois de ficar de fora das duas últimas edições dos Jogos, a atletas de 33 anos voltará a participar da Olimpíada.
Além de Derly e Camilo, outra joia lapidada por Kiko conquistou o mundo: Mayra Aguiar, em 2014 e 2017 — aliás, dos sete títulos mundiais do judô brasileiro, cinco foram conquistados por atletas treinados pelo gaúcho. Mayra foi também a primeira judoca do Brasil a subir duas vezes no pódio na história dos Jogos — bronze em 2012 e 2016.
Atual titular da pasta de Esporte, Lazer e Juventude de Porto Alegre, o técnico de 53 anos cumpre expediente durante o dia na secretaria municipal e à noite comanda treinos na Sogipa, com o apoio de uma equipe que reúne dois auxiliares técnicos, um preparador físico e outro treinador especializado em luta no chão.
Depois de acompanhar seus judocas em cinco edições dos Jogos, desta vez assistirá às lutas pela TV, em razão das restrições sanitárias. Ao projetar o futuro, Kiko fala em manter o ritmo pelo menos até os Jogos de Paris 2024. Até lá, espera continuar formando campeões.