A trajetória até a Olimpíada costuma ser marcada por renúncias e escolhas. E raramente ela é retilínea. Não faltam, claro, histórias de superação. Samory Uiki Bandeira Fraga, 24 anos, é um exemplo de que essa longa caminhada vale a pena. Em 24 de abril, o gaúcho criado na Intercap, enfim, viu a materialização de um sonho que alimentava desde criança.
Com a marca de 8m23cm obtida no Torneio Cidade de Bragança Paulista (SP), ele obteve o índice olímpico no salto em distância e se juntou ao amigo e colega de clube Almir Júnior (salto triplo) na equipe de atletismo que representará o Brasil nos Jogos de Tóquio.
A pouco mais de um ano da data originalmente marcada para o maior evento esportivo do planeta, no entanto, o cenário era pouco animador para o atleta da Sogipa. Recém-formado em Relações Internacionais pela Universidade de Kent, nos Estados Unidos, o jovem que iniciara sua trajetória no atletismo por meio de um projeto social da prefeitura de Porto Alegre ainda não havia conseguido deslanchar na modalidade.
Depois de quatro anos priorizando as lides acadêmicas, relegando a segundo plano os treinos e as competições, seu melhor salto até então, de 7m82cm, estava longe de levá-lo à Olimpíada – seria preciso melhorar a marca em 40 centímetros.
No processo de adaptação à vida nos Estados Unidos, Samory teve de superar um quadro leve de depressão, provocado principalmente pela distância dos pais e dos amigos, e até mesmo correu o risco de perder a bolsa de US$ 30 mil anuais destinada a alunos-atletas – não pelas notas, sempre altas, mas pelos resultados modestos em torneios universitários.
Após duas temporadas de altos e baixos, o gaúcho que começou a saltar aos oito anos com tênis doados foi melhorando seu desempenhos esportivo, mas ainda não na velocidade esperada. A limitação de cargas de treinos estabelecida pela autoridade máxima dos esportes universitários americanos, a NCAA (na sigla em inglês), era um dos entraves. Em Kent, Samory poderia dedicar não mais do que 15 horas por semana para atividades nas pistas e academias.
— Aqui (em Porto Alegre), muitas vezes em três dias eu completo 15 horas de treinos. Eu sabia que meu desempenho poderia cair nos Estados Unidos, seria difícil manter a performance atlética. E performance está relacionada à autoestima. O fato é que tive uma estagnação na minha carreira — admite.
Retorno ao Brasil
Com o diploma em mãos, em meados de 2019, decidiu tomar o rumo de casa, mesmo com convite para emendar o mestrado nos EUA. Depois de vencer na vida, chegava a vez de arrumar as malas de novo para perseguir o sonho olímpico. O jovem que gosta de mergulhar nos livros para "entender as relações de poderes entre os países" e "absorver culturas diferentes", preocupa-se com causa humanitárias como o drama dos refugiados e fala fluentemente inglês e espanhol (também se vira no idioma alemão e pretende ainda aprender a língua francesa), passou a focar sua preparação em busca da classificação para a Olimpíada.
Os desafios não seriam pequenos. Samory desembarcou na Capital nove quilos acima do peso e com dores crônicas no tornozelo e joelhos esquerdos, as articulações da perna da impulsão que mais sofrem o impacto dos saltos. Além disso, precisava lapidar a técnica dos movimentos para, numa primeira etapa, ultrapassar a barreira de 8m.
— Voltei ao Brasil porque acreditava em Tóquio. Tinha em mente que, se não conseguisse a classificação para a Olimpíada, eu iria encerrar minha carreira esportiva e me dedicar aos estudos — revela.
O problema é que Samory tinha pressa. Afinal, os Jogos começariam um ano depois e, é bom lembrar, ele teria de evoluir a ponto de saltar 40cm além de sua melhor marca. Então, veio a pandemia. Com o adiamento dos Jogos, em 2020, o gaúcho ganhou justamente aquilo que mais precisava: tempo para treinar. No último Troféu Brasil de atletismo, levou a medalha de prata com um salto de 7m93cm. Nunca tinha aterrissado tão longe na caixa da areia.
— Esse salto me deu muita esperança, para mim e para o Arataca — conta Samory, referindo-se ao seu técnico desde os 13 anos, José Haroldo Loureiro Gomes.
Em Bragança Paulista, além do salto que lhe valeu o índice, Samory superou a marca dos 8m outras duas tentativas, com 8m06cm e 8m09cm.
— Sempre soube que ele tem talento e um poder de concentração extremamente forte. Na volta aos treinos durante a pandemia, foi o Samory quem puxou o time, inclusive o Almir. Ele ainda tem espaço para evoluir. Tem melhorar, por exemplo, o deslocamento horizontal (no ar, em meio ao salto). Nosso treinamento agora está voltado para que ele seja finalista olímpico. Sendo finalista, tudo pode acontecer — destaca Arataca, lembrando que a marca de 8m23cm garantiria a Samory a medalha de bronze nos Jogos de Pequim 2008 e a prata em Londres 2012.
Amigo de longa data, Almir é outra pessoa importante na trajetória de Samory. A dupla dividiu um alojamento da Sogipa quando ambos ainda eram guris que sonhavam em chegar longe no atletismo. Qualificado para os Jogos desde junho de 2019, o mato-grossense radicado há mais de uma década no RS despontou em 2018, ao sagrar-se vice-campeão mundial indoor no salto triplo.
— Quando o Almir conquistou a prata no Mundial (em Birmingham, na Inglaterra), eu fui a primeira pessoa para quem ele telefonou. Ele sempre me incentivou muito a perseguir esse sonho olímpico. Sempre tivemos uma relação fraterna. Como ele é de fora, passava Natal e Ano-Novo com a minha família. A gente treinava até entrevistas no quarto, porque queríamos nos expressar da melhor maneira (quando atingissem o sucesso no atletismo).
— Samory veio dos EUA para isso. Ele me disse: "Vou para Porto Alegre para treinar contigo, fazer o índice e ir para a Olimpíada contigo" — lembra Almir. — Para mim, é uma satisfação ver um companheiro, um amigo, um irmão, realizando um sonho. Ele sempre foi diferenciado em tudo que faz. Samory é um cara ímpar, de uma educação e um caráter difíceis de encontrar hoje. Merece tudo que está colhendo. É um amigo que agrega muito na minha vida dentro e, principalmente, fora das pistas — completa o triplista de 27 anos.
Agora que a meta olímpica foi atingida, e antes de retomar os planos de fazer mestrado e doutorado fora do país, Samory já traça novos objetivos. Dono da quinta melhor marca do país na história da prova, ambiciona saltos acima de 8m40cm para estabelecer o novo recorde brasileiro. Para quem dependia de doações de tênis para treinar na infância, quem duvida de voos ainda mais altos do atleta?
O técnico e seus dois atletas olímpicos
Não existe maior satisfação para um técnico de modalidades individuais do que emplacar um atleta nos Jogos Olímpicos. Quando consegue levar dois deles para a mesma edição do evento, então, a realização é completa. Basta um telefonema a José Haroldo Loureiro Gomes, o Arataca, para constatar que, aos 63 anos de idade e 42 de Sogipa, o treinador de atletismo está radiante. Na mesma conversa, é possível vislumbrar que os poucos mais de 80 dias que faltam para a Olimpíada de Tóquio serão intensos.
Para Almir Júnior e Samory Uiki, já garantidos na delegação brasileira nas provas de salto, Arataca é mais do que um técnico. Foi ele quem os acolheu quando ainda eram garotos e os lapidou em busca da glória em um esporte nobre no programa olímpico, mas que sofre com falta de investimentos e oportunidades no Brasil.
Não raro, o técnico tira dinheiro do próprio bolso para garantir as melhores condições de treino para seus atletas. Recentemente, bancou R$ 16 mil por um equipamento que registra a velocidade dos saltadores durante a corrida. Mas, faz questão de frisar, não foi um gasto, mas sim um investimento.
Especialista em provas de salto, Arataca já formou e/ou treinou outros três atletas que competiram em Olimpíadas: Jorge Teixeira (salto triplo) e Marcelo Palma (20km de marcha atlética), que disputaram os Jogos de Seul 1988 e Barcelona 1992, e Gisele Oliveira (salto triplo), em Pequim 2008. Desta vez, acompanhará pela primeira vez seus pupilos na cidade-sede do evento.
— Treinar dois atletas olímpicos desde criança, fora do eixo Rio-São Paulo, é fruto de muitos anos de trabalho — destaca o técnico, que é escudado pelo auxiliar técnico Fabrício Romero, ex-especialista no salto em altura. — Sou privilegiado por treinar dois atletas diferenciados que se conscientizaram da necessidade de buscar seus objetivos.
— O Arataca é um figura paterna para mim, que ajudou a me educar ao lado dos meus pais (Dalmir Fraga e Carla Rejane Bandeira) — afirma Samory. — Desde criança eu convivo com a família dele, com sua esposa, a Martina (Kroll Lindemayer, que também foi sua treinadora). As filhas deles, a Thaís e a Alice, são como irmãs para mim. O Arataca acreditou mais em mim do que eu mesmo — resume.
Buscado no Mato Grosso quando era adolescente, Almir desabafa ao chamar a atenção para a capacidade do treinador e sua equipe:
— O Arataca me formou, me colocou nessa Olimpíada. Muitas vezes, por estamos no Sul e não no Centro do país, no polo do atletismo, muita gente duvidava da capacidade dele. Falaram que foi sorte. Isso mostra o trabalho de excelência que fazemos na Sogipa. Em nenhum outro lugar do país um treinador colocou dois atletas de salto na Olimpíada.
Inspiração em guerreiro africano
- O nome do atleta foi inspirado em Samory Touré, que foi um guerreiro e soberano Malinké, nascido em Miniambaladougou, na atual Guiné, em 1830. Para resistir à invasão francesa, desenvolveu um exército poderoso, com mais de 30 mil homens, equipado com armas europeias e treinado em métodos modernos de guerra.
- É considerado na história da França pós-colonial o adversário mais forte que os franceses tiveram na África Ocidental. Foi capturado em 1898, na Costa do Marfim, e exilado no Gabão. Morreu em cativeiro em 1900, vítima de pneumonia.