Os dados do último Censo, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que 10,2% dos brasileiros se autodenominam pretos. O número é maior se pardos forem acrescentados na conta — 45,3%. O futebol, no entanto, não segue essa lógica quando se olha para as casamatas dos clubes da Série A do Brasileirão. Ainda que, dentro das quatro linhas, veja-se muitos atletas negros, o mesmo não ocorre entre os técnicos da primeira divisão do esporte mais consumido no Brasil. Entre os 20 clubes, apenas um tem treinador negro.
Roger Machado é a exceção. Gaúcho, formado pelo Grêmio e atualmente comandante do Inter, uma das sensações do campeonato de pontos corridos. Homem, preto, que nunca se omitiu para criticar e falar sobre o racismo intrínseco ao futebol.
— Penso que tivemos evoluções, o país começou a olhar para essa questão. Porém, vejo que os avanços ainda são pequenos. Para mim, o futebol amplifica, cristaliza e aponta o que somos como sociedade. Se a gente imaginar o futebol como uma pirâmide social, na base está o campo. Sejamos pretos ou brancos, quem olha de cima da pirâmide enxerga todos pretos. Ou somos pretos pela cor da pele, ou pela mesma origem social, em sua maioria esmagadora — disse Roger após a vitória contra o Fluminense ao ser questionado sobre o Dia da Consciência Negra.
O ex-jogador e agora técnico sempre foi uma voz marcante na luta antirracista. Se primeiro era dentro de campo, virou personagem também depois de pendurar as chuteiras. É um dos maiores apoiadores do Observatório Racial do Futebol, dirigido por Marcelo Carvalho, amigo do técnico.
— Hoje, o futebol está descobrindo que o racismo não é só quando alguém chama uma pessoa negra de macaco. O racismo está quando a gente olha para os clubes de futebol e a gente não vê pessoas negras no espaço de gestão em comando. Quando a gente não vê treinadores negros. Como a gente não vê gestores negros. Por que o Roger hoje não é só uma inspiração para que a gente sonhe em ser jogador de futebol, ele é uma inspiração para quem também sonha em ser treinador de futebol, em ser gestor de futebol — afirmou Carvalho.
Dos seus quase 50 anos — completa em 2025 —, o treinador passou também a ajudar projetos paralelos, como o "Diálogos da Diáspora", que visa publicar livros de diversas áreas do conhecimento, de dentro e fora da academia, para dar voz a quem nunca teve.
— O Roger traz para a realidade algo que certamente algumas pessoas preferem silenciar. É mais fácil silenciar. Ele faz jus à sua origem, à sua consciência. E mostra que a sua responsabilidade social está acima. A gente vê cada vez mais alunos negros e indígenas no espaço universitário. E a gente viu que o mercado editorial não seguia na mesma velocidade. E foi em torno desse desejo de abrir o mercado editorial para promessas, para futuros autores e autoras, que a gente criou isso — conta Tadeu de Paula, coordenador da coleção Diálogos da Diáspora e amigo de Roger.
Da literatura para a música, o espectro cultural do treinador foi aflorado por sua família, sempre com a negritude sendo o fio condutor entre tudo isso.
— Eu li e comecei a cultivar o hábito da leitura. É o gosto, mas é transformar em hábito. Quero poder construir isso em outros. Ler me deixou muito mais crítico sobre a vida, sobre tudo. Hoje, talvez os quilombos modernos sejam as escolas de samba, como lugares de resistência da cultura negra — ressaltou em entrevista ao ge.globo em 2022, quando ainda treinava o Grêmio.
Não por acaso, a Imperatriz Dona Leopoldina escreveu um samba-enredo para o carnaval 2025 com a seguinte temática "A cor do futebol - A Imperatriz marca um gol contra o preconceito racial", inspirado muito pelo comandante do Inter, mas também com a marca da família Machado.
— Sendo o único treinador da Série A do Campeonato Brasileiro, de um time gaúcho, de um time porto-alegrense, caracterizado por ser o time do povo, que tem a mascote negro e que por vezes foi chamado de macaco, o Roger merece estar em um lugar de destaque no nosso desfile para provar para essas pessoas que o lugar do negro não pode ser delapidado. Ele deve hoje ser encarado como um lanceiro negro — defende Luiz Augusto Lacerda, carnavalesco da Imperatriz Dona Leopoldina e primo de Roger.
"É flecha certeira na intolerância
Real negritude a enfrentar
Denunciar essa tamanha ignorância
Coragem de virar o jogo
Sigo a te "observar"
A luta não pode parar" é o que diz trecho do samba composto pelo "Samba dos Guris", que estará no Porto Seco no ano que vem. Versos cantados, mas que poderiam ter sido ditos e escritos por Roger. Homem, técnico e negro. Exemplo de uma voz do presente, criada no passado, que vai ressonar no futuro.