O Gre-Nal de Curitiba colocará frente a frente adversários que estiveram do mesmo lado na hora mais difícil do Rio Grande do Sul. Jogadores de Grêmio e Inter deixaram a rivalidade para trás e ajudaram a população gaúcha durante a enchente de maio. Em resgates com a água pelo pescoço, na acolhida a quem perdeu tudo, no serviço em abrigos e com Pix, possíveis ídolos da bola reencontraram a vida real. O clássico das 17h30min deste sábado (22), o primeiro disputado acima do Mampituba, também contará com essa memória.
A dupla Gre-Nal, fora de campo, se uniu em uma ação. A "Jogando Junto" se propôs a liberar espaço em seus uniformes, banners e redes sociais para empresas que ajudassem pessoas e comunidades atingidas pela enchente. Mais do que qualquer gesto esportivo, a união entre os dois históricos rivais virou notícia mundial e atraiu as atenções para as necessidades do RS.
Os jogadores também fizeram sua parte. Girou pelas redes Rochet servindo comida em abrigo, Alario jogando bola com crianças, Marchesín participando de cozinha coletiva, Caíque de moto aquática em ruas inundadas, quase todos, dos dois clubes, entregando donativos. E também teve Thiago Maia.
Menos de três meses depois de ser contratado pelo Inter, Thiago Maia estava com água na altura do peito, em um condomínio no bairro Humaitá, retirando pessoas que nunca havia visto na vida. A imagem do jogador de R$ 20 milhões dentro de um lodo malcheiroso com uma senhora nos ombros é eterna.
A senhora em questão é Evair Carneiro Gomes, 71 anos. Fazia seis dias que ela estava ilhada no 10º andar do prédio onde mora. Sem água, sem luz e, por fim, sem gás, apenas via o movimento de botes, jet skis e demais embarcações se deslocando por uma rua em que, obviamente, só circulariam carros e ônibus. Uma cena inimaginável em sua década no prédio da zona norte da Capital.
Sem fornecimento dos itens básicos, o abastecimento de água e comida chegava em algum dos barcos. Então ela descia os 10 andares, parava no limite da parte seca, recebia doações, subia tudo de novo e ficava em seu apartamento esperando o tempo passar.
— Por volta de 19h eu já me deitava para dormir. O que mais poderia fazer? — recorda a mulher, que recebeu a reportagem de Zero Hora em seu condomínio.
Força-tarefa
Mantinha contato frequente com o filho, Odair, que havia levado a mulher e o filho para Viamão. Sua casa também estava condenada. Foi ele quem providenciou contato com o resgate para informar que Evair estava no prédio.
Isso coincidiu com a força-tarefa da qual Thiago Maia fazia parte. Ele e colegas de igreja resgatavam pessoas. Estavam quase encerrando o dia quando um cismou de voltar por aquela rua, porque "sentia que alguém precisava". Em frente ao condomínio, depararam com a aposentada pedindo ajuda da janela.
O grupo teve de dar uma volta extra porque a entrada do condomínio tinha água demais. Um dos voluntários, então, saltou do barco e entrou na água. Assim, no sexto dia da enchente em Porto Alegre, Evair desceu os 144 degraus entre seu apartamento e a portaria.
Ela subiu às costas do voluntário e foi carregada até o barco. Brincou com um dos resgatistas que filmava, dando tchau para o prédio. E de lá foi levada ao ponto de acolhimento da Avenida Cairú, onde, segundo ela, recebeu um atendimento de rainha.
De lá, foi para a casa de parentes no bairro Guajuviras, em Canoas. Quando reativou o celular, passou a receber mensagens. Uma delas, de um primo, dizia: "Sabe quem te resgatou?". Seu filho, colorado fanático, e seu neto Noah, sócio desde o nascimento, lhe contaram quem havia transportado nos ombros.
— Imagina um jogador do Inter me salvar. Sou colorada também, apesar de morar perto da casa do Grêmio — comenta Evair, que completa:
— O que eu diria para ele? Que é um herói. Graças a Deus e ao Thiago estou aqui. Ele poderia muito bem ter ficado em casa, com a família, estava seguro, no conforto do lar, e largou tudo para resgatar pessoas desconhecidas. Tenho gratidão eterna.
Agradecimento por "casa, banho quente e refeições"
Naqueles primeiros dias da enchente, no início de maio, o carro de Diego Costa foi um dos poucos capazes de encarar quase um metro de altura de água. Era esse o cenário em Eldorado do Sul, onde o centroavante mora desde que chegou ao Grêmio, em março. Com as rodas robustas e suspensões altas, não corria risco de perder o veículo, como ocorreu com milhares de pessoas no último mês.
Foi assim que o centroavante do Tricolor pôde transportar jet skis, barcos e, é claro, pessoas. E só isso já teria sido uma grande ação. Mas o camisa 9 que passou por Chelsea, Atlético de Madrid e disputou uma Copa do Mundo pela seleção espanhola fez mais: levou os resgatados para sua casa (que era a de Luis Suárez em 2023), abrigou-os e alimentou-os. Diversas vezes.
— Minha madrinha trabalhou com Suárez e agora está com ele. Quando soube que nossa família estava desabrigada na BR-290, pediu ajuda a Diego. Na hora, ele foi lá, buscou minha mãe, minha filha, minhas tias, levou para casa, arrumou um quarto e deu toda a liberdade. Todos os dias, ia na estrada dar apoio a quem estava ajudando na ponte de Eldorado. Mas apoio mesmo, do tipo levar em casa, oferecer banho quente, refeições. Não tenho palavras para agradecer o gesto dele. É um ser humano fantástico — conta Jonata Rosso, morador do bairro Sans Souci, em Eldorado do Sul, um dos mais atingidos pela enchente.
Documentos
O goleiro Caíque deveria ter enfrentado o Criciúma naquele domingo, 5 de maio, na Arena, pelo Brasileirão. Na disputa aberta pela titularidade do gol gremista, qualquer chance que aparecesse deveria ser agarrada como um chute frontal. Mas em vez do vestiário e das chuteiras, o goleiro estava com a água pela cintura caminhando pelas ruas do bairro Sarandi, na zona norte da Capital, uma das mais atingidas pela enchente.
Em um jet ski, Caíque ajudou pessoas a entrarem nos barcos que participavam das buscas de quem estava ilhado em suas residências.
— Foram três dias intensos, com muitas cenas doloridas. Vi o sofrimento daquele povo, crianças chorando, idosos, pessoas que tiveram um sonho acabado. Pegamos um senhor que foi contando que tinha acabado de reformar a casa dele. Quando fomos com ele pegar os documentos, entrou em desespero, porque viu a casa daquele jeito, aquilo machucou muito — disse Caíque.