Marcelo Dorneles cumpria sua missão de preparador de goleiros do São José na partida que marcou a retomada do futebol no Rio Grande do Sul após as enchentes que devastaram o Estado. Orientava Fábio Rampi, que não teve culpa nos 3 a 1 do Volta Redonda, no Passo D'Areia. Comemorava o pênalti defendido por seu comandado. E, ao mesmo tempo, conseguia esquecer, ao menos momentaneamente, que perdeu tudo o que estava no primeiro andar de casa. Que seu carro ficou submerso. Que o filho não tem mais brinquedos. Que ele e a família estão há 26 dias morando em outro lugar, enquanto o lar, no bairro Humaitá, ainda tem água acumulada.
Marcelo é mais uma vítima e herói que o esporte apresentou durante a catástrofe climática. Teve de sair de casa, não conseguiu sequer calcular o prejuízo financeiro, e agora inicia a limpeza da residência. Ainda assim, está desde o começo de maio resgatando vizinhos, preparando marmitas, acolhendo desabrigados. E agora voltou o pensamento ao futebol. Como?
— Não temos cabeça, a verdade é essa. É difícil. Meu filho está chorando porque quer voltar para casa, para os amigos, para a escola, que fica no bairro Navegantes, também muito atingido. Mas sem o trabalho, seria impossível retomar a vida. Amo o que faço. E o São José é minha segunda família. Isso ameniza a situação, somos acolhidos aqui — comentou o preparador de goleiros.
Vizinho dos familiares de Edenilson, ele fez questão de agradecer ao jogador do Grêmio, cria do Humaitá, pelos resgates na região. Os carros providenciados pelo atleta foram essenciais.
— Eu já estava pensando em colocar meu filho na cacunda e sair caminhando de lá, se não fosse a ajuda — contou o preparador.
O futebol ajudou Marcelo a ter alguns instantes de normalidade. Apesar de a partida que marcou a volta dos campeonatos ter tido quase nada de normal. A começar que foi de portões fechados, por sugestão do Ministério Público, com o objetivo de reduzir o efetivo policial e os profissionais e equipamentos de saúde.
Sem torcida, o jogo lembrou os piores momentos da pandemia. Sem torcida, é possível ouvir as palmas das mãos dos atletas se tocando nos cumprimentos pré-jogo, a bola quicando no chão. Sem torcida, o futebol não tem alma.
Outro ponto foi a mudança de horário. Às 13h30min, o São José foi informado pela CBF que o Volta Redonda solicitou que a partida que deveria iniciar às 18h30min fosse transferida para 21h30min. A alegação foi o desgaste do time carioca, que estava em Londrina no domingo, viajou para São Paulo, ficou um dia, veio para o RS em um voo para Passo Fundo e de lá se deslocasse a Porto Alegre de ônibus. O time chegou apenas no final da noite de terça. Volta para casa nesta quinta partindo para Florianópolis, novamente de ônibus, e de lá para o Rio.
Essas mudanças, é claro, desagradaram ao São José. O clube preparava ações solidárias e homenagens para a volta do futebol, mas sem público não fazia sentido executar qualquer coisa. Além disso, teve de pagar a mais para os funcionários e trabalhadores que estenderam o horário, além de prejudicar o planejamento do jogo.
A derrota foi natural. Típica de um time que está recomeçando, inclusive estreando técnico, Pingo, contra uma equipe entrosada e com ritmo. Foi o sexto jogo do Volta Redonda na Série C, e o terceiro do São José.
— Não quero pôr desculpa nisso, que fique claro. Jogamos mal, não fizemos o que planejamos. Mas é claro que influencia. Ficamos um mês sem jogar, duas semanas sem treinar. Tivemos problemas de deslocamento de atletas até terça-feira. O primeiro que precisamos fazer é recuperar a parte mental dos atletas, muitos foram atingidos ou têm alguém próximo que foi — disse o treinador.
Na segunda-feira, o time volta a campo, novamente no Passo D'Areia. A direção espera contar com a liberação do público para enfrentar o Náutico. Até para que profissionais como Marcelo e o zagueiro Tiago Pedra (que também participou de resgates), e os demais, possam ao menos receber aplausos de agradecimento e incentivo.
Até lá, o resumo veio de Marcelo, usando, talvez involuntariamente, uma expressão que tem tudo a ver com esses tempos, ao dizer que as pessoas não estão vivendo, estão apenas sobrevivendo:
— Vamos deixar o barco andar.