"Até que a morte nos separe". É assim que Antonio Carlos Oliveira, o Lako, define a relação de mais de seis décadas com o Vila Cristal, clube porto-alegrense de futebol amador que completou 85 anos em 2023. No próximo domingo (17), Lako e o irmão Paleman de Oliveira, o Lilão, com 78 e 76 anos, respectivamente, estarão reunidos com os demais jogadores e amigos para comemorar a longeva história da entidade criada em outubro de 1938.
A festa será no campo do América, no bairro Camaquã, às 10h. Atualmente, o Vila Cristal não tem mais lugar fixo para jogar. Porém, houve um período no qual a equipe, além de ter sede definida na Rua Curupaiti, reunia centenas de espectadores no bairro Cristal, na zona sul da Capital.
Desse tempo, Lako e Lilão lembram com saudade. De cada frase dos irmãos, brotam nomes, jogos e causos que constroem o folclore do futebol de várzea.
— O futebol amador era muito forte. Os campos sempre estavam cheios. O futebol era o esporte do povo, realmente. O Brasil foi campeão do mundo em 1958 e aí o futebol estourou em todos os cantos — comenta Lako.
Os dois vieram de São Gabriel para Porto Alegre ao lado da mãe viúva e de 10 irmãos. Ainda na década de 1950, por influência do mais velho dos filhos, Lako e Lilão ingressaram no Vila Cristal, quando tinham entre 10 a 12 anos. Não demorou muito para serem convidados a fardar pelo time nos campeonatos oficiais.
Ao chegar na idade adulta, o futebol não era um caminho a ser considerado como profissão. Lilão recorda que os jogadores não eram bem vistos pela sociedade da época, além de não terem uma boa remuneração.
—Ser jogador de futebol era ser vagabundo — conta.
A solução era procurar um trabalho formal, o que não era problema. Segundo Laco, quem era bom de bola acabava disputado pelas empresas. O vínculo empregatício tinha como pano de fundo (e objetivo principal) que o cidadão representasse "a firma" no campeonato das empresas. Lako e Lilão trabalharam a maior parte da vida como soldadores e caldeireiros navais.
Glórias e dificuldades
O Vila Cristal foi fundado pelo ex-deputado estadual José Vecchio. Uma década depois da criação, já há registro de um título citadino conquistado diante do Tristezense em 1948. Para os irmãos, a maior conquista ocorreu em 1978, no Beira-Rio. É nessa hora que a voz de Laco embarga e as lágrimas surgem. O palco da partida contra o Cruzeiro do Sul tornou o confronto único até hoje na trajetória octogenária do clube.
— Eu tinha 33 anos. Foi uma peregrinação dos moradores da nossa vila até o Beira-Rio — afirma Lako.
Já Lilão tirou daquela partida uma lição para toda a vida. Diante de um ambiente de pressão, quanto menos se olhar para a torcida, melhor.
— Tu entra, olha para os lados, e fica meio assustado — responde Lilão sobre como se sentiu naquela ocasião.
Ainda na década de 1970, o Vila Cristal ficou sem campo, em função de problemas administrativos. O time montou goleiras e desenhou linhas na área onde, hoje, fica o Barra Shopping Sul, junto à Avenida Diário de Notícias. O adensamento imobiliário crescente nos anos 1990 fizeram com que, mais uma vez, o Vila Cristal perdesse a sede. Desde 1997, a equipe é itinerante.
Presente e futuro
O Vila Cristal é atração por onde passa, não só pela longevidade do time, mas pela idade de dois atletas que ainda entram em campo. Lako e Lilão já não atuam mais no meio-campo, como no auge, e recuaram para a zaga e a lateral — para correr menos — , mas seguem entre os relacionados para os jogos. Foi assim na Copa Rio-grandense, finalizada em novembro, em Porto Alegre.
— Tu tem um grande prêmio no futebol, a longevidade — comenta Laco.
Nas partidas de 90 minutos, ambos atuam apenas por um tempo, e depois se dedicam aos comes e bebes que não podem faltar à beira do campo. Os irmãos não se envolvem mais na administração dos times, como na marcação dos jogos. Outro irmão, que também era colega de time, chamado Moacir, sofreu um infarto recentemente e não acompanha mais as disputas. O responsável pelo Vila Cristal agora é o presidente Antonio Carlos de Oliveira Junior, o Nego, 34 anos, filho de Lako.
Junior conta que o pai e o tio podem não ter o mesmo vigor físico de antigamente, mas a fome de bola é a mesma. Os decanos pedem o passe e, se ele não vem, a cobrança chega.
— O Vila Cristal continua porque os amigos trazem os filhos e netos, que continuam ingressando no time. Por isso, não nunca termina — acredita o presidente.
O treinador do time, Ailton Latzke, o Alemão, 61 anos, fala que, quando comenta sobre a história do Vila Cristal, as pessoas se surpreendem. A surpresa aumenta quando os jogadores "setentões" entram em campo.
— É uma satisfação estar junto com eles. É um pessoal que, acima de tudo, sabe jogar bola — descreve Alemão.
O Vila Cristal tem dois times, o livre e o veterano misto, um dedicado aos mais jovens e outro que inclui diversas idades. A equipe se mantém apenas com a colaboração dos próprios integrantes, já que não tem patrocinadores no momento.