No sábado (19), quando o árbitro de partida das provas preliminares dos 100m rasos do Mundial de Atletismo de Budapeste falar "às suas marcas", "prontos" e disparar o tiro de largada, pum!, será a primeira vez que o Brasil terá na pista um velocista que correu a prova abaixo dos 10 segundos. No final de julho, Erik Cardoso foi o responsável por tirar uma pedra da sapatilha do atletismo brasileiro. Um pedregulho sedimentado por 35 anos de tentativas frustradas. Um incômodo que se esvaziou em 9s97, tempo que lhe rendeu o segundo lugar no Campeonato Sul-Americano — Issamade Asinga, vencedor da prova com 9s89, testou positivo e pode ter sua marca anulada.
Os 100m são uma espécie de Hollywood da modalidade. Dessa corrida espocam os maiores flashes do atletismo. É dela que sai o homem mais rápido do mundo. É nela que cintilam os grandes nomes. E, na prática, o Brasil nunca fez parte desta festa. Aí reside parte do desconforto. Mas há muito mais por trás da amolação.
Em 1988, Robson Caetano cravou 10s e se transformou, até julho passado, no homem mais rápido da história da América do Sul. Uma marca competitiva para aquele naco da história, mas longe dos melhores tempos atuais em uma prova que cada piscada de olho importa.
As opiniões para que o recorde de Caetano perdurasse por gerações e gerações de corredores convergem sobre temas estruturais. Não só em relação às condições para os principais velocistas do país se desenvolverem, mas também na base da pirâmide, onde precisa haver quantidade para, lá no topo, gerar qualidade.
— Na década de 1980, tínhamos mais velocistas (brasileiros) flertando com a marca do sub 10s. Para se correr abaixo desse tempo, é preciso um número de praticantes de atletismo maior. Hoje há muito pouco. É matemática. Está faltando gente. Faltando base. Falta política esportiva nas escolas — avalia Lauter Nogueira, especialista em esporte de alto rendimento e ex-comentarista da Rede Globo.
A visão de Lauter é compartilhada por Robson Caetano.
— Precisa ter quantidade para ter qualidade e trabalhar em cima dessa qualidade, transformando a qualidade no grande nome. Como acontece na Jamaica, em Cuba com o xadrez. Se começa a promover isso nas escolas como disciplina, se não fizer direito é reprovação, punição. É preciso começar a disciplinar os jovens na escola, e que as escolas entendam a importância da educação física — declarou em entrevista a este repórter em 2015.
A Jamaica, citada por Robson, tem um torneio anual que tem sua parte final disputada em Kingston. O evento que atrai mais de 60 mil pessoas a cada edição é a reta final de um processo iniciado em diversas partes do país. Os primeiros resultados nas provas de velocidade surgiram no fim da década de 1940 e tiveram como ápice a geração capitaneada por Usain Bolt.
Está faltando gente. Faltando base. Falta política esportiva nas escolas
LAUTER NOGUEIRA
Especialista em esporte de alto desempenho
A baixa quantidade de praticantes também dificulta em outro processo visto como essencial para o garimpo de talentos. Não há um biotipo específico de atleta, mas características inatas que precisam ser encontradas. Técnico da Sogipa há mais de quatro décadas, José Haroldo Loureiro Gomes, o Arataca, explica que muitos fatores formam um velocista campeão. Mas há características específicas para se chegar à elite que não são proporcionadas nos treinos.
— Não adianta só treinar. Existem fatores genéticos. É preciso encontrar as qualidades neuromusculares necessárias. São questões genéticas que pesam até as provas de 400m. Há casos de atletas que são tão rápidos que se machucam por causa disso.
O atraso dos velocistas brasileiros pode ser visto na progressão do recorde mundial. Jim Heynes foi o primeiro a baixar a barreira dos 10s. Em 1968, o americano correu a 9s95. A melhor marca da história são os 9s57 feitos por Bolt, um tempo que perdura desde 2009.
Embora a marca tenha vida longa, o simbolismo de ser um sub 10s tem se banalizado, avalia Lauter. Apenas neste ano, 39 vezes se correu abaixo deste tempo. Último a engrossar a lista, Erik conseguiria um lugar na final olímpica de Tóquio com os seus 9s97 e terminaria o evento na sexta colocação.
Depois de Heynes, outros 186 velocistas de 35 países diferentes repetiram o feito. Mesmo que o resultado do americano soe desbotada em tempos atuais, parte da redução do tempo se dá pela evolução do material esportivo, das sapatilhas e das pistas. Há alguns anos, o canadense Andre De Grasse foi desafiado por um canal de televisão de seu país a correr a prova nas mesmas condições em que Jesse Owens competiu nos Jogos de 1936. Com sapatilha de pregos e pista de terra, o medalhista de bronze no Rio 2016 e em Tóquio 2020 não superou o americano.
— (No caso do Brasil) falta um pouco de material humano. Ficamos um tempo sem bons velocistas. Hoje, o treino mudou, ficou mais intenso. Atualmente, se treina o suficiente para que o velocista possa segurar por mais tempo a sua velocidade máxima. É um trabalho de muita força e potência. Também tem materiais esportivos. Hoje uma sapatilha pesa 200g — relata Arnaldo de Oliveira, medalhista de bronze no revezamento 4x100 nos Jogos de 1996.
Quem é Erik Cardoso
Paulista de 23 anos, Erik Cardoso estava próximo de vencer a corrida contra o tempo de Robson Caetano. Há dois anos, ele chegou a correr para 10s01 no Brasileiro de atletismo sub-23. A partida daquele dia se criou a expectativa de que o recorde seria derrubado.
— Foi uma surpresa para mim (aquele resultado). Então, desde aquela época se tornou um sonho possível. Nosso objetivo foi sempre melhorar a nossa marca pessoal. Eu sabia que qualquer coisinha que pudesse melhorar, eu poderia correr em 10s ou 9s99. Então, estava próximo — conta o recordista.
O início do atletismo foi aos 10 anos, no Sesi, equipe pela qual compete atualmente. Na infância, treinou muitas provas de lançamento e arremesso, chegando a colher bons resultados na sua categoria. Ele é filho de Denise Barbosa, ex-jogadora de vôlei, e namora a velocista Giovana Rosália.
Pela idade e pelo comprometimento, a marca será baixada em algum momento. Essa é a projeção de seu técnico, Darci Ferreira da Silva. Aqueles 9s97 estão sendo meticulosamente analisados para corrigir mínimas falhas.
— Assisti à prova várias vezes, e estamos trabalhando em busca da evolução na largada e na fase de transição. Tem espaço para evoluir, e a evolução vai ser na hora da competição. Ele tem a possibilidade de melhorar aspectos técnicos na prova. O objetivo é ser melhor que ele mesmo. Quanto vai correr? Só Deus e Nossa Senhora sabem — explica.
Erik não está sozinho
A pedra na sapatilha travou por completo os velocistas brasileiros. Sem um material humano para vencer os melhores, apostou-se na sincronia do revezamento 4x100m para conseguir bons resultados. Bronze nos Jogos de 1996 e 2008, no masculino e no feminino, e prata em 2000. A passagem precisa do bastão permitiu que os resultados fossem alcançados.
— Foram essas transições que seguraram as pontas e nos trouxe uma medalha de prata. Não foi a velocidade dos atletas. Mas é muito ruim contar apenas com a boa sincronia, que tem uma alta quantidade de treinos para ser alcançada. É pouco — enfatiza Lauter.
O revezamento tem chance de fazer estrago nos Jogos Olímpicos de Paris
ARNALDO OLIVEIRA
Medalhista olímpico no revezamento 4x100
Erik não está sozinho nessa corrida. Outros três velocistas estão próximos de ingressarem no hall de atletas sub 10s. O ex-BBB Paulo André e Felipe Bardi já romperam a barreira. Porém, em uma prova em que um sopro das costas pode fazer a diferença, os tempos foram invalidados por terem corrido com vento a favor mais forte do que permitido para homologação de marcas — os resultados das provas foram mantidos. Renan Gallina é o quarto elemento do quarteto. O jovem de 19 anos tem 10s01 como recorde pessoal.
— O revezamento tem chance de fazer estrago nos Jogos Olímpicos de Paris — prevê Arnaldo de Oliveira.
Integrante da equipe bronze em 1996, junto com Robson Caetano, André da Silva e Édson Luciano, Arnaldo conta sua experiência do que faltou para conseguir vencer o tempo icônico.
— Faltou mais competição com os melhores atletas. E também ter mais confiança e estrutura. Na minha cabeça, era impossível baixar dos 10s sem usar drogas. Eu vi que estava completamente errado. Agora com o Erik, os outros vão querer correr. Isso vai melhorar o nosso atletismo.
O recorde mais antigo
A competição mais constante com os melhores atletas é vista como um fator relevante para o aumento da competitividade. Desde parte do ciclo dos Jogos do Rio 2016, ocorreu uma internacionalização entre os velocistas brasileiros, com um calendário com mais provas fora do Brasil e períodos de treinos na Europa. Antes de embarcar para o Mundial em Budapeste, Erik passou por um camping de 10 dias em Portugal.
A pouca interação além-mar apresenta-se como um dos fatores que tornam o recorde brasileiro dos 800m o mais antigo nas provas olímpicas. Ouro nos 800m em 1984, Joaquim Cruz estabeleceu sua melhor marca dias depois dos Jogos de Los Angeles. Completando duas voltas na pista em 1:41.77, quase dois segundos abaixo do tempo que lhe rendeu a maior honraria olímpica. Até hoje este é o quinto melhor tempo da história da prova.
— Falta um pouco de organização. Ficamos um pouco atrás. Ficamos no nosso mundo. Agora, nos 800m, voltamos a ter atletas que correm em 1:45. Por que aconteceu? Porque os meninos foram para fora. Quando saem, os resultados acontecem. O Joaquim e o Zezinha (Barbosa) sempre treinaram nos Estados Unidos — relata Luis Gustavo Andrade, técnico do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa do Esporte Clube Pinheiros.
Oriundo do basquete, Joaquim Cruz conseguiu tempos animadores logo em suas primeiras tentativas após ter migrado de modalidade. Ele fez toda a sua carreira em território americano.
— É uma prova dificílima. O Joaquim é muito diferente dos outros. Não surge alguém assim a toda hora. Além disso, o recorde é uma excepcionalidade, é um momento daquele atleta — completa Arataca.