Entusiastas de esportes de aventura, Gabriel Bassanesi e Ludmila Lucas participaram no ano passado de uma prova de corrida de 69 km. A distância causa espanto, mas essa não foi a principal proeza dos dois. No último dia 16, eles se tornaram o primeiro casal gaúcho a sentir a gélida ventania que faz no topo do mundo.
Depois de 40 dias desde o início de todo o processo e 12 horas e meia de escalada desde a última base até aos 8.848 metros de altura, no cume do Everest. Por 45 minutos apreciaram a vista do ponto mais alto do planeta.
— É um misto de emoções. Lá de cima a gente vê todas as montanhas — explica Gabriel natural de Porto Alegre. — O mundo fica muito pequeno e a gente fica pequeno junto. Vai levar um tempo para absorver isso tudo — emenda a bajeense Ludmila.
A jornada até ter a montanha mais alta da Terra sob seus pés foi mais curta do que o normal. Não apenas pelas quatro dezenas de dias para chegar até lá (pode levar até 60), mas o tempo decorrido desde que se paramentaram pela primeira vez com bota, capacete, luvas e mosquetão até o Everest foi curto. São seis anos desde a experiência inicial, período em que fizeram um intensivo nos mais variados tipos de escaladas.
De férias no Japão em 2016, pesquisaram atividades disponíveis para turistas. Ao verem que o pico do Monte Fuji estava "apenas" a 3,3 mil metros do nível do mar, acharam que seria uma tarefa de baixa complexidade. A impressão ficou mais vivaz quando viram que a previsão para o dia da escalada era de 0ºC. Ledo engano.
— Nunca tínhamos feito trilhas longas ou subido montanha — explica Ludimila. — Essa temperatura tem em Porto Alegre, mas fizemos tudo errado — relata Gabriel.
Apesar de terem subestimado a escalada, vestindo calça jeans rasgada, calçando o tipo de bota errado e tendo de improvisar meias para colocar nas mãos, aprovaram a experiência. O combinado foi que seguiram olhando o mundo lá de cima, mas agora fazendo do jeito certo e com um nível de preparo tão elevado quando as alturas que pretendiam subir. No retorno, iniciaram a preparação com trilhas pelo Brasil.
O economista bem sucedido e administradora de empresa notaram em 2020 que nos finais de semana passavam mais tempo perambulando por aventuras espalhadas pelo país do que trabalhando ou realizando outras atividades. Então, radicalizaram (como se subir montanhas não fosse radical o suficiente). Abandonaram seus empregos para passarem os dois anos seguintes subindo e descendo tudo que fosse rochoso e que o topo não pudesse ser visto de terra firme.
Um imprevisto do tamanho de um Everest se interpôs quando o plano ganhou vida. A pandemia fez com que eles ficassem presos por dois meses nas Ilhas Maurício, onde experimentavam variados tipos de trilhas. Quando conseguiram a liberação para sair, desembarcaram no Piemonte, região montanhosa no norte da Itália, onde fincaram residência. Fincar é um modo de dizer, já que passam a maior parte do tempo fixando mosquetões em pedras íngremes.
Esse intensivo os transformaram em enciclopédias sobre montanhismo. Alturas, nome de montanhas, estatísticas, equipamentos. Qual tipo de perguntas com essa temática tem resposta instantânea. Especialmente quando questionados pelo tamanho do feito que alcançaram.
— Conosco, agora são 33 brasileiros que já subiram o Everest — respondeu um. — Ao todo são cerca de 6 mil pessoas — acrescenta o outro. — Somente 700 mulheres conseguiram — é a tréplica.
No ano passado, chegaram com seus equipamentos no Nepal pela primeira vez. A meta era explorar algumas montanhas na casa dos 6 mil metros de altura. Se aproximar do Everest pela primeira vez, olhar para ele e ver qual era a sensação para encarar o desafio que ancorou na cabeça deles.
— Ele não nos olhou de volta, ele nos convidou — conta Gabriel — Ele é um imã, na verdade — complementa Ludmila.
Sentiram o chamado, mas concluíram que não era o momento. A certeza surgiu somente em janeiro deste ano, quando encararam, aqui na América do Sul, o Aconcágua e seus 7 mil metros de altura. Concordaram que tinha chegado a hora de encarar aquela parede sem fim vizinha da troposfera.
Após passaram por um curso de gerenciamento de medo, iniciaram a jornada até o teto do mundo, mas foi somente nos últimos metros que tiveram o choque de realidade. Enquanto contemplavam o sol surgindo no lado chinês da montanha, a lua se escondendo no lado nepalês, a sombra da ponta da montanha sobre eles, viram corpos mortos de montanhistas que não conseguiu voltar para contar suas histórias.
— Era o lugar mais lindo que estivemos, e de repente vimos um corpo — destaca Ludmila.
Outros alertas são mandados dos "céus" durante a subida, como grandes pedras que rolam lá de cima e passam perto dos exploradores.
A parte final do trajeto é feita toda com um tubo de oxigênio suplementar, o que não impede de sentir os efeitos da altitude. Com pouco ar para respirar, a sensação, segundo eles, é de estar um pouco embriagado. A 8 mil metros, o aproveitamento do oxigênio cai para 30%. É como se as células fossem morrendo aos poucos. Há um vento barulhento e cortante.
Apesar de todos os riscos, as únicas sequelas que trouxeram no corpo foram a região dos olhos um pouco queimada devido ao vento. Ludmila contraiu um torcicolo, já curada.
A mesma sintonia usada para galgarem juntos grandes desafios são vistas na hora de conversar com o casal. As falas de Gabriel e Ludmila estão colocadas uma na outra porque é assim que eles relatam suas façanhas. Um entra na respiração do outro para agregar informação. Nunca em 30 minutos de conversa, um deles se atravessou na frase alheia.
Os dois ainda estão em Catmandu, capital do Nepal. Enquanto não voltarem para próximo do nível do mar evitam traçar novos desafios. Mas na região em que fincaram residência existem 82 montanhas com mais de 4 mil metros de altura. A altitude engana. Embora mais baixas que o Everest, elas exigem subidas mais técnicas. Até agora, exploraram apenas nove. Há muito a subir ainda, pois o objetivo é vencer todas. Mas Gabriel tranquiliza.
— Disse para o meu pai e pra minha mãe que eu prometo que de agora em diante, só vou fazer montanha menor que o Everest — conta antes de soltar uma gargalhada.