As mulheres romperam mais uma barreira no mundo do automobilismo. Pela primeira vez em sua história, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) passou a contar com uma representante feminina em uma de suas sete vice-presidências. A escolhida é a brasileira Fabiana Ecclestone, que passou a ser os olhos e os ouvidos da entidade para a América Latina.
Com longa trajetória no automobilismo, Fabiana atuou na organização do GP do Brasil (agora chamado GP de São Paulo) de Fórmula 1 por 25 anos, fundou a Associação Automobilística Brasileira (AAP) e, nos últimos anos, vinha trabalhando em diferentes comissões da FIA. A brasileira também é conhecida por ser casada com Bernie Ecclestone, lenda da Fórmula 1. O inglês, de 91 anos, foi um dos responsáveis por dar à categoria seu formato atual, ao longo de 40 anos e se aposentou no começo de 2017.
Fabiana se tornou uma das vices da FIA com a chapa encabeçada por Mohammed Ben Sulayen, dos Emirados Árabes Unidos, na eleição realizada em dezembro. A eleição do grupo de Ben Sulayen projeta mudança nos rumos da entidade, que vinha sendo comandada por Jean Todt desde 2009.
Nesta entrevista ao Estadão, Fabiana falou sobre os desafios da nova gestão, da importância de representar as mulheres na cúpula do esporte a motor e também de devolver ao Brasil um assento no Conselho Mundial, algo que o país não tinha desde 2008. Satisfeita com o crescimento feminino no automobilismo, ela projeta uma mulher comandando a FIA no futuro.
Você é a primeira mulher vice-presidente na história da FIA. Você tem consciência do simbolismo desta conquista para as mulheres?
Eu sempre trabalhei num meio muito masculino. Trabalhei anos no GP do Brasil (atualmente GP de São Paulo) e a equipe era formada em sua maioria por mulheres. Toda a equipe era feminina. Sei que, sim, existe muito preconceito, existem muitas barreiras para as mulheres conseguirem chegar nestas posições. Mas acredito muito que, se você tem um sonho, não pode deixar que ninguém te diga que não é para você. Acho que a mulher que se empenha consegue realizar seus sonhos. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito em todos os 25 anos que trabalhei no GP do Brasil.
Quais os principais objetivos desta nova gestão da FIA?
Nesse momento, estamos fazendo um levantamento de todos os projetos em andamento. Estamos circulando um questionário para todos os clubes para eles fazerem uma avaliação e indicar o que pode ser mudado. O trabalho dessa nova presidência é identificar o que está sendo feito. O trabalho é de qualidade? É isso o que as confederações precisam? Ótimo, vamos dar seguimento aos projetos que são positivos. Podemos melhorar e trazer outras opções? Vamos investir em novas coisas. Não é mudar só por mudar. É um gerenciamento voltado para as confederações. Queremos ouvi-las e entender as necessidades delas.
E quais são os seus principais desafios nesta gestão?
Minha posição, sendo vice-presidente para a América Latina, primeiro é explicar para todo mundo que no Brasil se fala português, e não espanhol. Agora estamos apresentando uma campanha de conscientização no trânsito e uma outra para atrair pessoas como voluntários. Queremos mostrar que o esporte é para todo mundo, para as mulheres, para as pessoas com mobilidade reduzida. A FIA está desenvolvendo um vídeo para atrair essas pessoas. Minha próxima intenção é visitar as confederações. O Zoom funciona, mas quero estar perto e ver como a FIA pode ajudar.
O que pode ser melhorado no automobilismo da América Latina?
Tudo pode ser melhorado, principalmente no Brasil, onde sempre falta investimento. O que foi feito no Speed Park (Kartódromo Internacional de Birigui, no Estado de São Paulo) me parece um investimento muito bacana e vai trazer, com certeza, campeonatos internacionais para o Brasil. É um exemplo de coisas que recebi da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA). A ideia é dar mais oportunidade para os pilotos. Recentemente a FIA conseguiu para a CBA o chassi dos karts do mesmo formato e padrão do Campeonato Europeu. Então, eles vão conseguir correr no Brasil com a mesma tecnologia europeia, mas pagando em real e estando em casa. Quanto mais acesso e tecnologia tivermos no Brasil, melhor. Acesso para as pessoas que querem fazer treinamento na pista, conhecer os regulamentos. A CBA me parece muito receptiva a esses projetos.
Com uma mulher na vice-presidência da FIA, é possível esperar uma atenção e desenvolvimento maior do automobilismo feminino?
É o que a gente sempre espera. Na FIA, existe um projeto grande, que é o "Girls On Track", no kart. Eles vão às escolas e deixam as meninas experimentarem. Nessas seleções, estão surgindo meninas que são rápidas, muito boas, e nunca tinham pensado em competir. Quanto mais divulgado, melhor. Hoje, com tanta tecnologia e redes sociais, quanto mais a gente divulgar e reforçar que o esporte é para todos, incluindo a mulher, melhor. Sempre há novos talentos. Falta investimento. A última mulher que a gente auxiliou foi a colombiana Tatiana Calderón, que é excelente.
Como vocês ajudaram a Tatiana?
Eu sou amiga dela. Vi um pouco de injustiça nos regulamentos e, por ser na época da Comissão de Mulheres no Automobilismo, sempre conversava com ela. O carro, muitas vezes, é desenhado para um corpo masculino, com um sapato número 42, por exemplo. Eram ajustes simples que faltavam. Conversamos com a equipe para ajustar alguns centímetros no assento, no tamanho do pedal. Eram coisas técnicas, simples, que ajudaram. Três centímetros fazem a diferença.
Teremos um dia, num futuro a médio prazo, uma participação feminina equivalente à dos homens em algumas categorias que não a Fórmula 1?
Equivalente ou superior acho pouco provável porque não existem tantas mulheres competindo. As mulheres são atraídas para diversas outras coisas antes de pensar no automobilismo. É uma barreira. Mas, sim, acho que vai aparecer um número maior de meninas. Antes, quando eu tinha 14 anos, só havia meninos correndo no kart. Hoje não. A cada ano, com a divulgação das informações e a diversidade que temos, as limitações diminuem.
Muitos dizem que o sobrenome Ecclestone está voltando à cúpula do poder no automobilismo e que o Bernie vai voltar a ter influência na Fórmula 1 e na FIA. Você se incomoda com esse tipo de comentário? Como costuma responder?
Eu nem respondo porque eu tenho minha carreira, minha experiência. Costumo brincar com o Bernie e digo que já era famoso antes de conhecê-lo. Eu entendo o lado de quem não me conhece e diz: 'ela está lá só porque é mulher do Ecclestone'. Mas eu trabalhei 25 anos no GP do Brasil, sou formada em duas faculdades, falo quatro idiomas, fundei o clube de mobilidade, fui membro-suplente do Conselho Mundial, estava na Comissão de Mulheres do Automobilismo, na de Recordes. Não me incomodam esses comentários. As pessoas podem pensar e tirar suas conclusões, mas não afeta a mim porque sei da minha competência e do compromisso que tenho com o Mohammed. Ele me convidou para jantar e me perguntou se podia contar comigo. No convite, o Bernie estava junto e até disse que não tinha nada a ver com aquilo. Eu é que tinha que decidir. Claro que o sobrenome Ecclestone é forte, esteve presente no automobilismo e ainda está presente porque as pessoas ainda querem ouvir o Bernie, mas de forma nenhuma ele vai influenciar algo na FIA.
Vi que você se mudou para a Suíça. Foi por causa de sua nova posição na FIA? O que o novo cargo mudou na sua rotina?
Mudei para a Suíça durante a pandemia, no começo de 2020, porque na época estava grávida. A situação sanitária no Brasil começou a piorar muito rápido e meu médico me aconselhou a sair do País antes que as viagens fossem proibidas. Acabamos vindo para a Suíça e fixando residência. Aqui as restrições foram mais brandas. Sempre pude sair para caminhar com o bebê. Há muito mais flexibilidade do que Londres, onde eu estava antes. Eu vou muito ao Brasil. Sempre ia de quatro a seis vezes ao ano. Isso vai continuar, mas as visitas devem se estender a outros países da América Latina, ou vou tentar trazer dirigentes para se reunirem no Brasil.
Como é trabalhar com o novo presidente da FIA, Mohammed Ben Sulayem?
Ele é uma pessoa muito receptiva. Já o conheço há vários anos. Estava sempre nas corridas. Sempre o encontrava no jantar de gala representando a FIA no final do ano. Ele é muito respeitoso com as mulheres, tem uma cabeça aberta. E é muito fácil trabalhar com ele porque está sempre disponível. É muito sensato, muito fácil de conversar. As conversas sempre são rápidas. Não há críticas em relação à administração anterior. O nosso objetivo é revisar o que puder e trazer mais qualidade. É uma pessoa sem vaidades e não segura informação com ele. Até me deixou livre para dar entrevistas e falar o que eu penso.
Você pensa em dar passos maiores na FIA? Quem sabe, tentar a presidência no futuro?
Não penso nisso. Um passo de cada vez. Estou contente como vice, não faço planos. Ainda não tenho essa ambição, mas não me surpreenderia em ver uma mulher como presidente da FIA no futuro. Hoje temos o primeiro presidente não europeu na FIA. Foi até essa uma das razões pelas quais eu apoiei a candidatura do Mohammed. Minha queixa era nesse sentido de que antigamente havia uma visão muito europeia. Eu dizia para eles que o Brasil é muito grande. Eles não tinham a visão do tamanho do Brasil e dos problemas e dificuldades. O Brasil é um país muito rico, mas que não tem os recursos aplicados adequadamente. O automobilismo no Brasil ainda é visto como um esporte de elite. Os talentos existem, precisam de oportunidade.
Qual a importância para o Brasil de voltar a ter representação política na cúpula do automobilismo?
É extremamente importante porque é no Conselho Mundial em que se decidem todos os regulamentos de todas as modalidades, os calendários, o protocolo de covid-19... Tudo que é relacionado ao automobilismo passa pelo Conselho. Hoje, o Brasil está representado no cargo mais alto do automobilismo onde todas as decisões são tomadas. Isso me deixa muito feliz, pela posição importante que tenho e por haver mais esse assento no Conselho Mundial. O Brasil, com a qualidade e quantidade de pilotos talentosos que produz, é muito importante que esteja presente. Se não, ninguém ouve a nossa voz. Essa é a minha missão agora: levar para a FIA os anseios e necessidades da América Latina para trazer recursos e projetos de acordo com a necessidade.