As jovens Evelin Salles, Claudinéia Ribeiro e Giza Proença, moradoras da Reserva da Guarita, em Tenente Portela, noroeste do Estado, estão escrevendo mais uma página da história do Futebol Feminino do Rio Grande do Sul. Elas integram o Flamengo de São Pedro, equipe sediada no município distante 463 quilômetros de Porto Alegre, que pela primeira vez inclui indígenas na disputa do Gauchão.
A reportagem de GZH visitou a Guarita, maior reserva indígena do Estado, para contar histórias das jogadoras, do time e do projeto que envolve paixão pelo esporte. Neste domingo (10), a equipe recebe o Inter, pela terceira rodada do Estadual.
Como as demais companheiras de equipe, Evelin, Giza e Claudinéia treinam apenas uma vez por semana. E não são remuneradas. Trabalham na agricultura ou em empresas da região, além de acumularem rotinas de casa e os cuidados com os filhos. Na luta pelo sonho de ser atleta, é necessário superação.
— Já disseram que não chegaria a lugar algum. Hoje, eu respondo jogando futebol — conta Giza Proença, atacante de 26 anos, uma das 10 indígenas do clube de Tenente Portela.
Contra o Inter, as indígenas prometem entrar em campo com rosto, braços e pernas com pinturas típicas de sua etnia — houve autorização da Federação Gaúcha de Futebol (FGF) por se tratar de manifestação cultural, não um protesto. Ou seja, será um símbolo de orgulho e que entrará para a história do futebol gaúcho. Além de Evelin, Giza e Claudinéia, outras sete indígenas integram o sub-16 do Flamengo.
Giza: mãe, dona de casa e jogadora
A emoção de estar em campo, vestir a camiseta de um time e disputar um título requer dedicação, que não fica restrita apenas às quatro linhas. Aos 26 anos, Giza Proença divide o tempo e a meta de se tornar jogadora de futebol com as rotinas da casa e os cuidados com o filho de 10 anos. Ela mora com os pais numa casa próxima ao campo de treino. A figura da atacante representa inspiração entre as meninas que estão começando a jogar:
Eu não tenho condições de pagar uma academia, por isso treino aqui no campo três vezes por semana. No clube, é somente aos sábados
GIZA PROENÇA
Atacante indígena do Flamengo de Tenente Portela
— Quando a gente gosta do que faz, sempre sobra um tempo. Precisamos ser muito dedicadas, eu sou muito. Sempre falo para as gurias que me acompanham que precisam ter dedicação. Quando as outras meninas me enxergam treinando, me sinto motivada. Com dedicação, chegamos longe.
Enquanto se preparava para as imagens, era possível notar a admiração das outras meninas ao ver Giza ganhando destaque.
— Estou correndo atrás do meu sonho e tenho certeza de que vou chegar lá — diz Giza.
A paixão pelo esporte surgiu ainda quando criança. Na própria aldeia, eram disputados campeonatos femininos. Com o passar do tempo, Giza ganhou espaço em outros times da região. O campo de grama é cercado pelo chão batido de terra vermelha.
A extensão do gramado é marcada por uma cerca de arame, mas sem qualquer marcação de linhas ou do círculo central. Sem a estrutura de um clube profissional, uma de suas motivações foi a craque Marta. A garra e a coragem da atleta eleita seis vezes como a melhor do mundo são combustíveis para manter vivo o espírito de que sonhar é possível.
— Gosto de futebol desde pequena. Jogava alguns campeonatos na área indígena. Quando cresci, passei a jogar em outros times, em torneios regionais e estaduais. Há diferenças em jogos contra as profissionais. Elas são mais resistentes do que a gente. Eu não tenho condições de pagar uma academia, por isso treino aqui no campo três vezes por semana. No clube, é somente aos sábados. Na área indígena é mais pegado, porque não há jogadoras de tanta habilidade como no profissional — comenta.
Às vésperas da partida contra o Inter, o time de Giza teve um desfalque. Elisa, sua irmã, que já vinha atuando pelo time no Gauchão, precisou dar um tempo no esporte. Em virtude da contaminação do filho pequeno pela covid-19, prioriza os cuidados à criança no momento.
As inspirações de Claudinéia
A partida contra o Inter marcará um encontro especial para Claudinéia Ribeiro. Aos 19 anos, a atacante terá a oportunidade de estar frente a frente com o clube do coração e jogar no mesmo gramado de ídolos, desta vez em lados opostos. Como colorada e atleta, duas de suas principais referências estão na zagueira Sorriso e na atacante Shashá, ambas do time feminino colorado. A persistência de Marta e Formiga são inspirações para seguir na luta.
No campeonato, precisa de muito físico, cansamos rápido, o campo é maior. É difícil também porque não temos entrosamento. Falta academia, campo e alimentação mais saudável
CLAUDINÉIA RIBEIRO
Atacante indígena do Flamengo de Tenente Portela
— Meu sonho é poder jogar no Inter, mas primeiro preciso pensar no meu time. Vamos ver as oportunidades que vão aparecer, para isso que estou me esforçando — revela Claudinéia.
A jovem, que já precisou fugir da avó para poder jogar futebol, reforça o coro das principais dificuldades do time com relação às outras equipes no Gauchão feminino:
— É muito diferente, aqui na aldeia não temos um preparo físico. No campeonato, precisa de muito físico, cansamos rápido, o campo é maior. É difícil também porque não temos entrosamento. Falta uma academia, um campo e também uma alimentação mais saudável.
Evelin, o orgulho dos pais
— Tem alguma jogadora que você assiste na TV e pensa: quero ser como ela?
— Não, só jogador mesmo (risos).
— Qual jogador? De quem você gosta?
— Do jogador que era do Grêmio, o Cebolinha. Agora ele foi embora, infelizmente. Eu o olhava jogando e queria ser como ele.
Sempre quis orgulhar meu pai, que já foi jogador. Ele jogava por aí, mas não teve a oportunidade que tenho hoje
EVELIN SALLES
Atleta sub-16 do Flamengo de Tenente Portela
Uma das poucas torcedoras tricolores do time, Evelin Salles, 16 anos, da categoria de base, não demonstrou receio em dizer que uma de suas inspirações está em um atleta do masculino. Mas a entrevista, que começou em gargalhadas, terminou em lágrimas:
— Sempre joguei futebol na escola, com meu pai em casa. Depois que ele comprou a TV, olhávamos os jogos juntos. Desde pequena, o meu sonho é ser jogadora. Quero que meus pais tenham orgulho de mim. Sempre quis orgulhar meu pai, que já foi jogador. Ele jogava por aí, mas ele não teve a oportunidade que tenho hoje.