Quem ligou a TV no último domingo para ver a dupla Gre-Nal presenciou um momento histórico. Tanto no jogo do Grêmio contra o Ceará quanto no do Inter diante do Sport as transmissões foram comandadas por mulheres – Natália Lara no caso do Tricolor e Renata Silveira, no do Colorado. Renata foi a primeira mulher a narrar uma partida de futebol nos canais Globo. Estreou em março deste ano após passagens pela Fox e pela Rádio Globo. Depois de transmitir basicamente jogos de campeonatos estrangeiros, agora começa sua aventura no Brasileirão. Tem 31 anos, é educadora física, com pós-graduação em jornalismo esportivo, dona de uma academia de dança e mãe de Bernardo, oito anos. Do Rio, sua cidade natal, ela atendeu GZH por telefone para esta entrevista.
Recentemente, GZH fez uma reportagem na qual mostramos meninas que querem ser narradoras. Você é uma das pessoas que mostram que esse sonho é possível para elas. Como é essa responsabilidade?
Exatamente. A gente nem cogitava ser narradora. Quando me perguntam se sempre quis ser narradora, chega a ser engraçado, porque eu realmente nunca tinha visto uma mulher narrar futebol. Acho que isso também ocorria porque não tinha uma referência, a gente não se via naquele local. Nunca imaginei. Entrei por um concurso, primeiro na Fox, depois na Rádio Globo, fui me apaixonando pela profissão. E a parte mais gratificante é saber que posso ser uma inspiração para essas meninas, essas mulheres, que me enxergam ali e pensam que também podem ser narradoras de futebol.
Você gostava do futebol ou da narração?
Sou apaixonada por todos os esportes desde criança. Minha matéria preferida na escola era educação física. E o futebol entrou na vida porque meu pai nos levava ao estádio e ao clube. Fui crescendo com essa paixão. Cursei Educação Física, segui praticando vários esportes, sou péssima no futebol. Apaixonada, mas não sou boa jogadora.
Dia desses, o apresentador do Esporte Espetacular, da TV Globo, Lucas Gutierrez, brincou nas redes sociais que não conhecia os jogadores do Botafogo, e a comentarista Ana Thaís Mattos apontou que invejava poder dizer isso: se fosse ela a fazer essa piada, seria xingada.
É verdade.
Você sente uma cobrança extra por ser mulher no futebol?
Não só eu, mas todas as mulheres que trabalham com futebol sentem. Bárbara Coelho (apresentadora da Globo) costuma dizer: “Quando um homem erra, ele se equivocou. Quando uma mulher erra, ela é burra”. Temos essa pressão extra, sim. Temos de estar preparadas em dobro. Temos de estudar em dobro. Quando vou para uma transmissão, me preparo muito, porque tenho uma visibilidade grande. Porque quando uma pessoa liga a TV e vê uma mulher, já se pergunta: “Será que sabe do que está falando?”. Temos de estar sempre prontas.
Há uma questão estética na transmissão. Como prepara a voz? Tem algo a fazer na hora do gol para não ser estridente, por exemplo?
As pessoas estão acostumadas, a vida inteira, a ter um homem falando. Então, quando você coloca uma mulher a narrar, é normal estranhar, não tem problema. Me considero uma privilegiada por ter um tom de voz grave, mais próximo do masculino, não fica tão longe assim. Mas fazemos um acompanhamento com fonoaudiólogos, porque preciso atingir os agudos na hora de gritar gol. A questão estética é do costume mesmo, é as pessoas se habituarem a uma mulher narrando o gol.
E quanto à imagem: não tem comentários sobre narradores homens, se o Luiz Carlos Júnior (narrador do SporTV) está bonito ou não, por exemplo. E com você? Existe cobrança para aparecer bem no vídeo?
Isso acontece e é algo sobre o que pouco falamos. A gente vê poucas mulheres mais velhas na TV, por exemplo, na comparação com homens. Claro que contribui o fato de haver menos mulheres trabalhando (no jornalismo esportivo), mas proporcionalmente tem diferença, sim. E tem a ver com a questão estética. Isso precisa terminar. É como você falou: ninguém comenta se o Luiz Carlos Jr. está bonito ou não, e, no caso das mulheres, muitas vezes o comentário nem é sobre o trabalho dela, e sim sobre ela, o cabelo, o batom. Não queremos isso; queremos que falem da nossa competência. Claro que faz parte da vaidade aparecer bem. Mas eu não me cobro particularmente. Sempre fiz tudo, dança, esporte, sem essa cobrança. A preparação é normal para aparecer na TV.
Você acompanha a repercussão do trabalho nas redes sociais? Como é a sua relação com o público?
Confesso que já acompanhei mais, mas com a atual rotina de trabalho não dá mais tempo. Na Fox, a gente chamava a hashtag do jogo para ter interatividade e, quando acabava, eu ia ver os comentários. Até 2018, as pessoas focavam na novidade de ter uma mulher narrando o jogo, sejam elogios ou críticas, inclusive as pesadas. Claro que não gostava de ler as críticas pesadas, mas nunca me abalei. Era um combustível para seguir adiante. Depois de 2018, mudou um pouco. Algumas pessoas até diziam que era a primeira vez que ouviam uma mulher narrar, mas aumentou muito o número de interações sobre o jogo, o desempenho dos atletas. Como se fosse um homem narrando, sabe? Naturalizou. Até porque narrador não é protagonista, estamos só para contar o jogo, dar emoção. Temos de aprender a olhar as mensagens positivas. São muito mais pessoas apoiando, elogiando, e a gente só pensa na crítica. Está errado.
A gente vê poucas mulheres mais velhas na TV, na comparação com homens. tem a ver com a questão estética. Isso precisa terminar. Ninguém comenta se o Luiz Carlos Jr. está bonito ou não, e, no caso das mulheres, muitas vezes o comentário nem é sobre o trabalho dela, e sim sobre ela, o cabelo, o batom.
Agora você está tendo a oportunidade de narrar o Brasileirão. Você pensava nisso quando ia com seu pai aos jogos?
Nunca imaginei isso. Vai ser incrível. E vai ser um desafio maior, porque estaremos falando com as grandes torcidas do país. Na Fox, eu narrava jogos do Campeonato Espanhol ou do Argentino, então quem via normalmente era quem mais gostava do jogo. Agora, não, vou falar com os torcedores mesmo. Aumenta a responsabilidade. Vejo aqui em casa, que meu marido põe a culpa no narrador quando o time dele perde (risos). O torcedor tem isso, é supersticioso, passional. Então tenho de ser totalmente imparcial na narração, levar a emoção para todas as torcidas igualmente.
Você narrou Brasileirão, Copa do Mundo, Olimpíada. Quais são seus desafios na carreira?
Meus desafios são diários. Mas o que é curioso é que nunca narrei no estádio, sempre foi no estúdio. Quero muito fazer um jogo no estádio. Mas com torcida. Que essa pandemia acabe logo, até para poder sentir a emoção do ambiente, viver essa sensação. Quero cobrir uma Copa do Mundo, uma Olimpíada.
Falando em Olimpíada, haverá uma preparação especial para narrar outros esportes?
Em breve vou ter oportunidade em outra modalidade. Vai ser um desafio. Não saiu a escala da Olimpíada ainda, não sei se vou narrar só futebol. Mas quero sair da minha zona de conforto.
É curioso ver uma narradora falar em zona de conforto. Há cinco anos ninguém imaginava ouvir isso.
É...
As redações aumentaram o número de mulheres. Você percebe uma inclusão feminina por parte das empresas na editoria de esportes?
É um trabalho de formiguinha, vamos aumentando aos poucos. E vamos nos fortalecendo, uma ajudando a outra, incentivando, porque só assim vamos para a frente. As empresas estão enxergando isso. Muita gente fala: “Ah, está ali porque é mulher”. Não. É pelo fato de ser mulher e ser competente para estar ali. É ocupar o espaço e estar pronta para aproveitar a oportunidade quando aparecer. A narração feminina não tem mais volta, já é uma realidade. E, daqui para a frente, vamos estar em mais empresas de comunicação. Não queremos tirar espaço dos homens, queremos ter igualdade de transmitir um jogo também.
Eu não tinha uma referência. Entrei por um concurso e fui me apaixonando pela profissão. a parte mais gratificante é saber que posso ser uma inspiração para as meninas, as mulheres, que me veem e pensam que também podem ser narradoras de futebol.
Você sentiu rejeição dos colegas homens em algum dos locais que trabalhou? Ainda existe esse preconceito?
Imagino que exista. A sociedade tem machismo, preconceito, dentro das empresas deve haver também. Mas eu nunca presenciei nada. Nem na Globo, nem na Fox, nem na Rádio Globo. Pelo contrário, acho que, por ser uma novidade, as pessoas sempre foram solícitas, abraçaram a causa e me acolheram.
Qual é a narração dos seus sonhos?
Sempre quis narrar um título da Seleção Brasileira. Mas não precisa ser no futebol, pode ser uma medalha. Depois de uma vida entregue ao esporte, o atleta chegar a uma medalha, e eu poder contar essa história será o auge.
Circula na internet uma brincadeira de que, quando a Renata narra, sai muito gol. E que dá sorte para alguns times. Como é isso?
Está sendo o casamento perfeito, Renata e Rede Globo. Estou com essa fama. Comecei fazendo Botafogo x Moto Club, no dia 17 de março. O Botafogo está mal, foi rebaixado, passando por reestruturação... e ganhou por 5 a 0. A torcida fez campanha, querendo que eu narrasse sempre. Dali por diante, dei sorte porque narrei várias goleadas. A média está bem alta. Anoto todos os jogos, e minha média é de quatro gols por partida!
Você tem uma relação especial com a dança.
A dança foi minha primeira paixão, comecei com três anos. Aos 15 já dava aula. Foi quando a empresa do meu pai faliu e minha irmã e eu passamos a ajudar em casa. Dançar era a única coisa que sabíamos fazer. Mas eu nunca enxergava a dança como profissão, culturalmente é muito difícil no Brasil. Tinha o sonho de ter uma academia. Só que é louco, porque fiz Educação Física e, quando terminei a faculdade, fiz pós-graduação em jornalismo esportivo, já querendo trabalhar com futebol. Levo a dança em paralelo. A última matéria da minha pós foi empreendedorismo. E, por conta disso, abri minha academia de dança em 2015. Fiz isso até este ano. Como agora tenho uma carga horária maior por causa das narrações, não consigo mais dar aula, sou só a dona (risos). A dança ajudou muito também no vídeo, saber se posicionar, interpretar, e também a disciplina.
Você é narradora, bailarina, empresária e mãe. Como consegue conciliar?
Quando a gente ama o que faz, fica mais prazeroso. É uma rotina pesada mesmo, precisa planejar, organizar. Bernardo fez oito anos agora, respira futebol. A TV está sempre ligada no SporTV. Ele foi acostumado a ver a mãe e outras mulheres no esporte. É gratificante fazer tudo, estou gostando muito porque estou conseguindo conciliar. E sou nova, tenho 31 anos, é hora de fazer tudo mesmo.
Como é com seu filho? Ele acompanha, ouve, comenta sobre sua profissão?
Fala, fala muito. Ele fica todo bobo quando me vê na TV. O SporTV fez uma homenagem no Dia das Mães, um vídeo comigo e com mais duas colegas. Falaram que faríamos uma entrevista sobre Olimpíada, me preparei e, quando cheguei lá, era uma pegadinha. Às vezes ele está jogando videogame e fica pedindo para eu narrar. Ou quando a gente desce para jogar bola no condomínio, ele me pede para narrar. Na escola, fala para os amigos: “Minha mãe é narradora da Globo”. Ele adora.