Aos 61 anos, a sueca Pia Sundhage é um dos grandes nomes na história do futebol feminino. Dona de três medalhas olímpicas por Estados Unidos e Suécia, ela acredita que o trabalho à frente da Seleção Brasileira é o maior desafio da vitoriosa carreira. A menos de um mês do início da Olimpíada de Tóquio, ela conversou com GZH e falou sobre os dois anos treinando o time brasileiro e a preparação para os Jogos – tentará, com Marta e companhia, chegar à quarta decisão consecutiva do principal torneio do mundo. Nos cerca de 40 minutos de conversa, não fugiu de perguntas sobre os desafios de ser uma mulher estrangeira trabalhando no país, as evoluções necessárias para futebol feminino no Brasil e a importância da voz feminina no esporte.
Você vai completar dois anos à frente da Seleção Brasileira. Que avaliação faz desse período?
Estou feliz que disse sim para esse trabalho. É muito diferente de tudo o que já fiz, mas às vezes é exatamente a mesma coisa, porque nós jogamos dois tempos de 45 minutos. Tudo em volta é diferente, e eu acho que esse é o maior desafio que já tive. E acho que é muito divertido, porque eu venho de outra cultura. O melhor é que as jogadoras brasileiras são técnicas. No futuro, o jogo será acelerado, e todos terão de ser ainda mais técnicos.
Qual é o maior desafio de treinar no Brasil?
Lidar com o calendário. Vim da Suécia, onde somos muito organizados. Como treinadora, você sabe o que vai acontecer no próximo dia, no próximo mês, no próximo ano. Aqui é mais flexível. E a covid-19 tornou as coisas ainda mais difíceis. Algo que eu faço com mais frequência é conferir duas vezes, acompanhar, para ter certeza do que os brasileiros querem dizer quando falam ou fazem alguma coisa.
Você diz que as jogadoras brasileiras são mais técnicas. Culturalmente, quais são as maiores diferenças para as norte-americanas e as suecas?
Sendo sueca eu tento trazer organização para a Seleção. Temos muitos talentos individuais, mas, para mim, crescendo na Suécia, a palavra "time" é muito importante. Especialmente na defesa, mas também no ataque. E dos EUA eu trouxe a palavra "coragem", ter a habilidade de fazer o melhor e olhar adiante quando há um desafio. As americanas não se intimidam nunca. No Brasil, o jogo é algo individual, habilidoso e muito emocional. Isso é ótimo quando as coisas vão bem, mas não é tão bom assim quando as coisas dão errado. Então eu tento falar sobre organização, determinação e ter o máximo disso no jeito brasileiro de jogar.
No Brasil, o jogo é algo individual, habilidoso e muito emocional. Isso é ótimo quando as coisas vão bem, mas não é tão bom assim quando as coisas dão errado.
Como tem sido sua rotina no Brasil? Você disse que na Suécia sabe seu cronograma com antecedência. Como não ter isso afeta o dia a dia?
Acho que eu fiquei melhor em estar presente, em aproveitar o dia. É quase como um sonho se tornando realidade o fato de que moro no Rio de Janeiro e estou cercada por jogadoras de futebol técnicas. O importante para mim é não ficar estressada. Nosso calendário após a Olimpíada não está definido, ao contrário da Suécia e dos EUA. Tenho que me adaptar a um estilo de vida diferente. Mas, como eu disse, fiquei melhor em acompanhar algumas coisas. E acompanhar também é dar retorno, e para mim isso é evolução.
Antes da pandemia, nós a vimos muitas vezes em jogos de clubes brasileiros. Qual a importância de ir às partidas pessoalmente?
Gosto de assistir aos jogos, e é muito mais divertido fazer isso das arquibancadas. É difícil agora com a covid, mas fico feliz que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) me permita ir a tantos jogos. Acho que é importante estar lá para sentir o jogo. E também para mostrar respeito pelos clubes. Porque, no final da contas, só estou pegando as jogadoras emprestadas por um curto período. Quero ter certeza de que eu as trato com respeito, de que posso falar sobre as situações nos clubes, não apenas na Seleção. E eu aprendo bastante sobre o futebol brasileiro. Lembro do meu primeiro jogo (Inter x Flamengo, em Porto Alegre, em 2019). Eu pensava: "O que é isso? É tão diferente de tudo o que já vi". Foi um processo de aprendizado. Agora, acho que a liga está ficando mais forte, já a comparo com a da Europa, a dos EUA e a da China.
Quão longe você acha que nós ainda estamos dos Estados Unidos e da Europa?
Acho que em algumas partes do jogo nós estamos no mesmo nível dos melhores times do mundo, mas em outras, não. Você tem ações por 90 minutos no futebol, e às vezes vemos belos gols, ótimos movimentos de defesa, chegadas na área, mas isso não ocorre por 90 minutos no Brasil. A fraqueza que vejo é a parte física. E um pouco da parte mental também, porque já vi jogadoras que fazem coisas fantásticas, que não vi nos EUA e na Europa, mas, se não são bem-sucedidas dentro de um jogo, ficam abaladas. A velocidade do jogo está melhorando em todos os países. Se as atletas brasileiras mudarem um pouco a mentalidade e a parte física, podemos estar entre as melhores.
Isso tudo, especialmente o mental, leva anos para mudar. Como você vê o desenvolvimento das jovens no Brasil?
Esse é o próximo passo para mim, depois da Olimpíada. Falo com a Simone (Jatobá, técnica da Seleção sub-17), com o técnico da Seleção sub-20 (André Jardine), mas ainda não passo tempo suficiente com eles. Acho que todos nós temos de colocar energia nessa etapa. Temos de encontrar novas jogadoras e dar suporte a elas. Esse é o próximo passo. Se você olhar a Seleção hoje, Marta e Formiga ainda estão lá. Temos jogadoras que estão chegando aos 30 e não vão durar para sempre. Depois da Olimpíada, a missão é encontrar novas jogadoras.
Eu realmente acredito que o jogo e o ambiente do futebol seriam muito melhores se houvesse mais mulheres.
Apenas quatro dos 16 times do Brasileirão feminino são treinadas por mulheres. Por que isso acontece e qual a importância de ter mais mulheres nesse cargo?
Estamos melhores do que a Suécia, onde há uma mulher em 12 times. Tem sido assim por muitos anos. Eu realmente acredito que o jogo e o ambiente do futebol seriam muito melhores se houvesse mais mulheres. Vamos dizer que você tem um homem treinando um time. Ok, mas é importante que no estafe dele tenha homens e mulheres. O que menos gosto na Suécia é que, se você fizer cursos, trabalhando em um time feminino, talvez esse time pague metade ou você tenha de pagá-los sozinha. Agora, se você treina um time masculino, eles pagam. Há muitos obstáculos. Modelos importam, e essas quatro técnicas são importantes. Espero que logo haja mais.
Você tem na sua comissão a Duda, ex-jogadora do Inter. Ela é uma lenda do futebol feminino no Rio Grande do Sul. Como tem sido sua experiência de trabalhar com ela?
Sim, ela é minha chefe (risos). Posso dizer que é uma vencedora. Se você olhar seu passado como jogadora e, depois disso, trabalhando com futebol, ela quer competir sempre. É uma mulher trabalhadora. Se há obstáculos, ela tenta encontrar uma maneira de superá-los. Isso é o que você espera de uma goleadora: ela encontra maneiras de superar os obstáculos.
Em 2020, você disse que o time ainda não estava como queria, que precisava de mais tempo para as coisas se ajustarem. Como vê isso agora, mais perto da Olimpíada?
Ainda é um desafio, porque, comparando com os europeus, os EUA e o Japão, nós não disputamos tantos jogos na pandemia. Suécia, EUA e Holanda, os três melhores times do mundo, estão jogando. Nós temos treinamentos, e sou feliz por isso. Mas é um desafio. Para ser honesta, é difícil de falar quão longe estamos de competir com essas três equipes, porque não são apenas as jogadoras, mas a comissão técnica também precisa treinar. Por exemplo, a última vez que vi a Formiga foi em novembro, quando enfrentamos o Equador. A Ludmila eu não vejo desde fevereiro. Nós teremos um tempo de treinamento para a Olimpíada, onde espero que tenhamos as prioridades certas.
Você tem duas medalhas de ouro (com os Estados Unidos, em 2008 e 2012) e uma de prata (com a Suécia, em 2016). Acha que é possível sonhar com a quarta decisão em Tóquio?Sempre há uma chance. Eu digo que você tem de chegar às quartas de final. Com o grupo que temos, acho que é possível chegar lá. Então, serão oito times, e aí tudo pode acontecer. Se você puder fazer isso e seguir um plano de jogo, acho que temos chance de conseguir uma medalha, sim.
Na Copa do Mundo de 2019, vimos muitas jogadoras aproveitando o momento para falar sobre homofobia, machismo e racismo. O que você acha disso? E, como estrangeira, de que forma enxerga o Brasil quanto a essas questões?
É ótimo quando você tem opinião sobre o jogo, sobre futebol em geral, masculino e feminino, porque você tem um debate e isso ajuda a espalhar a palavra. É algo que falta no futebol feminino. Se você olhar para trás, a primeira Copa do Mundo foi em 1991. E levamos muitos anos para chegar onde estamos hoje. A mídia teve um papel importante nessa situação. O que acho que mudou de lá para cá foram as mídias sociais, que garantem que você espalhe as palavras. E direitos iguais são importantes. Mas há diferenças de um país para outro. Muitas coisas aconteceram desde que cheguei ao Brasil. Falamos sobre a Duda antes. Pois acho que tanto ela quanto eu e também as pessoas com quem trabalhamos, nós desempenhamos papéis importantes em mudar as atitudes. Estamos prestes a fazer isso. O fato de eu ter sido contratada sendo uma mulher de outro país me diz que foi uma busca por mudanças culturais. Acho que em quatro ou cinco anos as coisas vão estar bem diferentes.
No final do dia, você deve olhar para o panorama geral e identificar que foi criado um ambiente vencedor. Para isso é importante que você seja generosa e respeitosa, mesmo que não tenha as mesmas ideias ou opiniões
Recentemente, a jogadora Chu, do Palmeiras, deu declarações homofóbicas. E ela não está na convocação para a Olimpíada. Você leva esses aspectos em consideração quando monta o time?
Cada um de nós é responsável pelo que escreve e diz. Isso me inclui. O que quer que você diga, tem de ser responsável por isso. Às vezes você comete erros, e é difícil revertê-los, mas é possível. Pedindo desculpas. Eu acredito em pessoas, em seres humanos. Então fazer comentários sobre tipos diferentes de pessoas... Acho que isso é errado, para começar. Mas outra coisa é que vamos para a Olimpíada, e tenho de montar o melhor time possível. Precisamos de defensoras, meio-campistas, mas não apenas isso. Elas precisam trazer algo para o ambiente, especialmente por serem apenas 18 jogadores. No final do dia, você deve olhar para o panorama geral e identificar que foi criado um ambiente vencedor. Para isso é importante que você seja generosa e respeitosa, mesmo que não tenha as mesmas ideias ou opiniões.
Com o movimento Black Lives Matter, temos visto atletas ao redor do mundo protestando. Não temos esse costume no Brasil. Por que acha que isso acontece?
Não sei. Mas vejo o mundo tendo a chance de se manifestar pelos direitos humanos, e isso não pode ser errado. Me sinto muito confortável para dar minhas opiniões sobre o jogo, sobre comportamento no campo, por exemplo. Porque sou especialista nisso. E não em outras coisas. Mas ainda posso ter minha opinião. Agora, respondendo sua pergunta: não sei porque isso ocorre no Brasil. Estou aqui há apenas dois anos.
Você assiste aos jogos do futebol masculino também? O que pensa do nível brasileiro atual?
Sim, você liga a TV e vê muitos jogos, muitos programas, muitas opiniões. É interessante ver a diferença de como você se organiza, especialmente na defesa, comparado com a Europa. Se você olhar a Libertadores, por exemplo, também já é diferente. Os jogos são explosivos, você tem gols malucos, ações loucas. Mas também não é por 90 minutos. O nível é difícil de avaliar, mas é interessante. Se você é um bom jogador brasileiro, onde você joga? Se responder a essa pergunta, isso te diz um pouco sobre querer evoluir. Não é só pelo dinheiro, mas por querer evoluir, ganhar os troféus mais importantes.
Clubes brasileiros têm contratado treinadores estrangeiros. Acha que os times femininos estão longe de fazer o mesmo?
Não. Porque o que acontece agora na CBF, o suporte ao futebol feminino tem melhorado cada vez mais. Você precisa de uma treinadora para vir ao Brasil e espalhar a palavra. Honestamente, se você está na Europa, não sabe muito sobre o futebol feminino jogado aqui. Recebo muitas ligações perguntando sobre jogadoras. As pessoas sabem que temos boas jogadoras na Seleção, mas não conhecem nada da liga – que mudou para melhor. O Brasileirão Feminino está melhorando. Não acho que estamos longe ter uma treinadora estrangeira em um time brasileiro. Eu também adoraria ver jogadoras estrangeiras vindo para cá. Você consegue imaginar uma das melhores jogadoras dos EUA ou da Europa escolhendo vir para o Brasil e jogar em um dos melhores times? Essa seria uma grande mudança neste momento, e a acho possível.
E como você vê seu impacto nessa mudança após dois anos?
Sou uma peça em um quebra-cabeça maior. Tento trazer algo diferente porque sou diferente, venho de outra cultura. Tento me comunicar com as pessoas, preciso entender a cultura também. Acho que é bom que eu tenha estado nas finais olímpicas algumas vezes, isso ajuda. E estive em bons times. Se você é uma ganhadora, tem mais chance de ser ouvida. Porque as pessoas ouvem ganhadores.
Quando o Brasil ganhou a medalha de prata, em 2004, as pessoas passaram a dar mais atenção ao futebol feminino. As expectativas ficaram altas, mas a mudança de processo para vencer demora. O que ainda precisamos fazer para mudar essa cultura?
A situação se repete no mundo todo. Como jogadora, lembro que, em 1984, nós (Suécia) ganhamos a final europeia. E as coisas não se refletiram nos clubes. Não se refletiram no interesse das pessoas até 2019. Na França e na Espanha as coisas estão ficando melhores. Lá, os investidores finalmente entenderam quão grande pode ser o impacto da combinação entre mulheres e futebol. E não apenas no jogo, mas na sociedade. Valer a pena buscar o reconhecimento do futebol feminino, porque isso se reflete na sociedade como um todo. Você aprende que o trabalho em equipe não é algo que pode ser feito apenas por homens. Por muitos anos se acreditou nisso. Mas agora mudou. E acredito que no Brasil mudará também em alguns anos.
Pia e o assédio
A treinadora não quis responder sobre a denúncia de assédio apresentada no último dia 4 por uma funcionária contra Rogério Caboclo, presidente afastado da CBF. No dia 11, jogadoras e a comissão técnica da Seleção feminina entraram em campo com uma faixa onde se lia “assédio não”. A assessoria de imprensa da entidade infirmou que a única declaração de Pia sobre o assunto se deu em entrevista coletiva no dia 10, quando ela falou: "É muito serio. (...) Conversamos com as atletas, e todas tiveram oportunidade de dar opinião e falar sobre. E cada uma de nós tem que ter responsabilidade sobre as suas respostas. No fim do dia, temos que dar um passo adiante. Estamos nos aproximando das Olimpíadas. Sim, fomos um pouco arrebatadas por toda essa situação, e acho que é importante voltarmos o foco para o campo".