Para o Futebol Clube Santa Cruz, o título da Copa Ibsen Pinheiro representou, além do troféu, a primeira participação na Copa do Brasil de uma instituição de 107 anos. Para os jogadores do Futebol Clube Santa Cruz, o título da Copa Ibsen Pinheiro foi ainda maior: a conquista significou a volta por cima de uma classe de trabalhadores que viu sua profissão ser ameaçada pela pandemia. Um conjunto de histórias de dificuldade, superação, reviravolta e glória, quase um milagre de Natal.
Na verdade, alguns casos são tão surpreendentes que soariam inverossímeis se fossem transformados naqueles filmes que passam nas tardes de dezembro. Como o do centroavante Jajá, goleador pelo Interior e que, para sustentar os filhos no período sem futebol, foi trabalhar em uma fruteira/peixaria, voltou 10 quilos acima do peso e fez o gol do título. Ou o do goleiro Fabiano Heves, que foi impedido de voltar para casa, no Paraguai, e precisou entrar escondido em razão das medidas sanitárias.
Teve ainda o goleiro Medina, que foi motorista de aplicativo em Rio Grande, o zagueiro Léo Carioca, que vendeu açaí na praia no Rio de Janeiro, o volante David, que foi trabalhar na lavoura plantando e colhendo melancias. E houve também quem conseguiu algum emprego em times de outros Estados ou apenas treinar. Ou, como definiu o lateral-direito Marlon: "Esperando um milagre".
Outro fator que deixa o título ainda mais fantástico é que o Santa Cruz quase não disputou a Copa Ibsen Pinheiro. A pandemia fez os dirigentes pensarem em fazer como a maioria dos clubes gaúchos, fechar as portas no restante de 2020 e aguardar um 2021 melhor.
— Já tinha jogado uma Copinha em 2014 como presidente, e o objetivo era jogar ano inteiro, ter sequência, manter comissão, identificação dos atletas com o clube. Mas preciso admitir que, num primeiro momento, fui contra jogar, pensava em guardar os recursos pra 2021. Graças a Deus, meus colegas de diretoria me convenceram. Devo tudo a eles — confessa o presidente do Santa Cruz, Tiago Rech, ele também um personagem desse conto de Natal.
O jornalista foi notícia mundial nas últimas semanas, dando entrevistas para publicações de todos os continentes, a respeito da histórica vez que foi o torcedor solitário do Santa Cruz em uma partida contra o Grêmio, ainda no Olímpico, ao presidente campeão.
Envolvido na administração do clube e em outras questões, delegou a montagem do grupo ao técnico William Campos e ao gerente Sérgio Lima Vieira, o Serginho. Quando confirmou que participaria da competição, recebeu a seguinte mensagem do treinador: "Vai dar certo. No final do ano, vai tomar uma gelada na praia como campeão".
William previu o futuro, mas se espelhou no passado. E no exemplo de casa. Seu pai, Beto Campos, treinador do Novo Hamburgo campeão estadual de 2017, morreu precocemente, em um infarto fulminante no ano seguinte. William trocou a função de centroavante para a casamata. Com a inspiração do pai, a quem se refere sempre como seu herói, seu ídolo, fez contato com os atletas de confiança, que, por já lhe conhecerem, agilizaria a adaptação.
— Tínhamos noção que os jogadores estariam parados, mas montei o time, com o Serginho, em cima do sistema que queríamos, com estratégia definida. Por isso, conseguimos pular etapas, o que foi importante ainda mais sabendo que não teria pré-temporada. Sabíamos o que eles poderiam fazer, pela qualidade deles. O mérito é de todos — analisa William Campos.
Essa conjunção de histórias, ligações, sacrifícios e gols dará ao Santa Cruz mais uma recompensa. Em forma de cota por participação, a Copa do Brasil será como um Papai Noel atirando do céu praticamente meio milhão de reais, para o clube que disputará a Terceira Divisão do Rio Grande do Sul.
O valor pode ser ainda maior caso o time avance na competição nacional. E alguém duvida de uma equipe com tantos milagres ao mesmo tempo?
Histórias de superação
Jajá, da fruteira ao gol do título
O narrador Marcelo de Bona, da Rádio Gaúcha, contou essa história: na época em que trabalhava em Frederico Westphalen e cobria o União-FW, ficou uma tarde vendo o centroavante Jajá treinar pênaltis. Diz o De Bona que ele cobrou 50 e acertou todos.
Na Copa Ibsen Pinheiro, também. Foram duas chances e dois gols, na semi e na final da competição. Em ambos, o jogador de 34 anos entrou só para bater penalidades.
É que Jajá estava (muito) acima do peso. Mas a categoria para cobrar pênaltis não esteve relacionada aos quilos.
— Infelizmente não consegui ganhar dinheiro com o futebol. Não tenho casa própria, moro de aluguel, tenho dois filhos, gente que depende de mim. Quando o campeonato parou, tive que me virar para sustentar a família — conta.
Para isso, Jajá aproveitou as amizades que o futebol amador lhe deu. Um amigo do time de Santo Antônio da Patrulha no qual jogava o tradicional torneio Serramar lhe indicou para um emprego em Alvorada. Foi trabalhar em uma fruteira que também funcionava como peixaria. O centroavante passou os meses indo no Ceasa buscar frutas, legumes e verduras, limpando os pescados e atendendo clientes.
— Às vezes que eu começava às 6h e ia até 21h. Trabalhando em pé. Chegava em casa exausto, só conseguia tomar banho e me atirar no sofá. Não tinha forças para treinar, fazer atividade física. Por isso engordei. Não vou te mentir: cheguei uns 10kg acima do peso — justifica.
Apesar desta situação, o técnico William Campos confiou no camisa 9 que havia sido sua dupla de ataque e depois seu comandado, ainda no São Borja. Aceitou correndo o convite do Santa Cruz, mesmo sabendo que o salário seria menor:
— Não podia dizer não para o William, para o Santa Cruz. Futebol é o sonho realizado. Enquanto o sangue seguir pulsando aqui dentro, vou seguir jogando. E se for da vontade deles, estou pronto para a Copa do Brasil do ano que vem.
Léo voltou ao seu lugar
Leonardo Konzen, o Léo (ou o Risada, apelido que ganhou da boleirada), foi capa de Zero Hora no momento em que o futebol parou. Àquela altura do ano, em 4 de setembro, não havia perspectiva de retomada para os times que não disputassem as séries A, B, C e D do Brasileirão e 90% dos atletas que instavam inscritos na Divisão de Acesso (interrompida na terceira rodada) estavam desempregados. Léo era um desses 90%, após sair do Avenida, rival do Santa Cruz.
Montado em uma escada, balde de tinta e pincel em mãos, posou para o repórter fotográfico Jefferson Botega, que eternizou o momento em que o futebol tinha virado, de novo, um sonho distante. Para sustentar mulher e filha recém nascida, foi trabalhar na construção civil. Em novembro, recebeu convite do Santa Cruz e voltou para debaixo das traves.
— O futebol é o meu lugar — disse à ZH em novembro, quando foi contratado.
Ao lado dos companheiros Fabiano Heves e Guilherme Medina, treinou sob comando do preparador de goleiros Cristiano Amaral.
Mas o milagre de Natal de Léo Risada não se limitou "apenas" a sair do futebol, arrumar emprego na construção civil, ser destaque no jornal, voltar a jogar e ser campeão. Teve ainda mais perrengue: ele teve problemas na inscrição por uma questão burocrática de ter jogado na Suíça.
— Depois me lesionei, ficou fiquei quase 20 dias fora e, quando voltei, peguei covid-19 e precisei ficar afastado — contou.
Como ele mesmo diz: o futebol vale a pena até nisso.
Fabiano Heves e a quarentena no Paraguai
Antes de defender dois pênaltis na final da Copa Ibsen Pinheiro, Fabiano Heves, quase foi preso. Ok, pode ser um exagero. Mas ele arriscou-se para poder reencontrar a família, em uma situação inusitada.
Goleiro do São Gabriel na Divisão de Acesso, estava no interior gaúcho quando a pandemia paralisou o futebol. Como não sabia de quanto tempo seria a interrupção, optou por ficar perto, na casa de uns tios em Campo Bom. O problema é que, com o aumento de casos, o Paraguai fechou as fronteiras. E a capital do Paraguai é o lugar onde "mora" normalmente, com sua mulher e seu filho desde que foi jogar lá pela primeira vez, em 2012.
— Fui para São Paulo ficar com minha mãe e minhas irmãs. Tentei me reinventar, treinando em casa.
Enquanto aguardava as notícias, a saudade da família aumentou e o goleiro decidiu se arriscar. Já fazia quatro meses que estava longe de casa.
— Entrei ilegal mesmo. Fui flagrado, deu problema. Daí paguei uma multa, fiz uma quarentena.
Voltou ao futebol a convite do Santa Cruz. E defendeu dois pênaltis na final da Copa Ibsen Pinheiro.
David plantou melancia e colheu troféu
Jogando pelo Villa Nova, o volante David teve como última partida antes da paralisação o Atlético-MG. Depois disso, entrou em recesso, treinou sozinho, voltou para o RS e o dinheiro acabou.
— A gente tem família para sustentar. Ficar parado não era uma opção — relatou.
Então foi fazer o que sabia. Em Passo D'Areia, uma localidade de Rio Pardo, meteu-se na agricultura:
— Vim para casa quando futebol parou. Em outras oportunidades já tinha trabalhado na lavoura de melancia. Com tudo parado, retornei à lavoura então, até acertar com o Santa Cruz.
Após o final do campeonato, seguiu na luta com pás, enxadas e transporte.
— É bom para mostrar o que nós, jogadores do Interior, passamos. Muitas vezes, só conseguimos contratos de três meses e temos de nos virar o resto do ano para garantir o sustento — finalizou.
O que eles fizeram antes de voltar a jogar
Em pé, da esquerda para a direita
- Medina, 22 anos, goleiro , treinou em uma clínica e foi motorista de aplicativo em Rio Grande. É estudante de educação física. Último time: São Paulo-RG, Divisão de Acesso 2020.
- Jajá, 34 anos, centroavante, trabalhou em uma fruteira e em uma peixaria. Estava no Santa Cruz se preparando para a Terceirona 2020.
- Allan Christian, 27 anos, lateral-esquerdo. Trabalhou como auxiliar de pedreiro em Coronel Fabriciano-MG. Estava no Santa Cruz se preparando para a Terceirona 2020.
- Nena, 38 anos, centroavante. Treinou sozinho, mas estava jogando o Paulista da Série A-2 pela Portuguesa Santista.
- Léo Carioca, 34 anos, zagueiro, vendeu açaí, salgados e bebidas no Rio de Janeiro. Estava no Real Brasília-DF antes da paralisação.
- Jean Roberto, meia, 26 anos, treinou sozinho. Último time: Pelotas no Gauchão 2020.
- Benhur, 25 anos, volante, treinou sozinho. Último time: Cruzeiro-RS na Divisão de Acesso 2020.
- Fabiano Heves, 37 anos, goleiro, não pôde entrar no Paraguai, onde mora com a mulher e o filho. Foi para São Paulo ficar com a mãe. Ficou treinando em casa. Último time: São Gabriel, na Divisão de Acesso 2020.
- Cristiano Amaral (preparador de goleiros)
Agachados, da esquerda para a direita
- Thiaguinho, 24 anos, meia-atacante, treinou sozinho. Último time tinha sido o Inter-SM na Divisão de Acesso de 2019. Preparava-se para jogar a Terceirona pelo Santa Cruz.
- Vinícius, 22 anos, atacante, treinou com personal trainer desde a paralisação. Último time: Guarani-VA na Divisão de Acesso 2020.
- Jefferson Luiz, 37 anos, meia, treinou sozinho, fez parte da equipe do Sindicato dos Atletas. Último time: Sobradinho, no Estadual do DF de 2020.
- Thomaz, 22 anos, volante, treinou sozinho nos primeiros três meses, depois fez uns bicos de serviços gerais. Estava no Santa Cruz antes da Terceirona.
- David, 25 anos, zagueiro/volante, trabalhou em lavoura de melancia. Último time, Villa Nova-MG, no Mineiro de 2020.
- Fogaça, 29 anos, estudante de educação física, deu aula como personal trainer no período em que ficou parado no Sinop-MT.
- Elias, 31 anos, volante, estava treinado em casa no interior de Minas Gerais. Está no Santa Cruz desde o ano passado.
- Ivan Lima, 33 anos, lateral-esquerdo, treinando sozinho em Sapucaia, passou pelo Toledo-PR na segunda divisão.
- Marlon, 22 anos, lateral-direito. Treinou em casa sozinho, ficou recebendo auxílio e esperando alguma proposta "ou algum milagre". Último time foi o Avenida, na Divisão de Acesso de 2020.
- Laion, 22 anos, atacante, treinou sozinho. Estava no Santa Cruz se preparando para a Terceirona.
- João Bueno (massagista)
Além deles:
Luis Henrique (foto ao lado), 36 anos, zagueiro, treinou sozinho e trabalhou no Centro de Formação de Condutores (CFC) de sua família em Santa Cruz do Sul. Último time: Avenida, na Divisão de Acesso 2020.
Léo Konzen, 24 anos, goleiro, trabalhou como pedreiro e auxiliar na construção civil. Último time: Avenida, na Divisão de Acesso 2020.