A sexta entrevistada da série de entrevistas Futebol do Futuro é uma medalhista olímpica. Ex-zagueira da Seleção Brasileira, Aline Pellegrino é coordenadora do departamento de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol.
Em campo, Aline foi prata na Olimpíada de 2004, ouro no Pan de 2007 e capitã no vice mundial do mesmo ano. Nos gabinetes, luta pelo fortalecimento da modalidade no país e pela valorização do papel das mulheres. Apesar da pandemia, está otimista.
O que é possível falar sobre a situação do futebol feminino nesta pandemia?
Acho que a pandemia não pode ser usada como desculpa por pessoas que, de certa forma, já colocavam empecilhos para desenvolver o futebol feminino. Toda a cadeia do futebol não voltará mais de onde estava. A sociedade como um todo. E ninguém sabe quando e como será a retomada. Pode parecer que o futebol feminino vai sofrer mais do que o masculino. E não vai. Vai sofrer igual. A diferença é que só os Brasileiros A-1 e A-2 tinham começado. Então, por que o Inter e o Grêmio voltaram, por que a Federação Carioca está estudando voltar, a Federação Paulista está preparando protocolo? É porque são competições que já tinham começado e precisam ser finalizadas. Para mim, está muito claro que, a hora que o masculino voltar, será o momento para começar a pensar na retomada do feminino. Estou tranquila e batendo nesta tecla.
Como está o trabalho na Federação Paulista para minimizar os impactos da crise?
Seguimos trabalhando muito. A estratégia tem sido estar muito perto dos clubes, dos gestores e das atletas. Precisamos passar a situação atual, mas mostrando que a tempestade não está só na cabeça deles. Estamos criando estratégias.Tínhamos um campeonato com conselho técnico, equipes definidas e formato. Agora vamos repensar tudo. Precisamos ter unidade. Temos alguns cenários. Na semana que vem, começaremos um ciclo de videoconferência com as atletas, falando de gestão pessoal e familiar e da saúde da mulher atleta.
Toda a cadeia do futebol não voltará mais de onde estava. A sociedade como um todo. E ninguém sabe quando e como será a retomada. Pode parecer que o futebol feminino vai sofrer mais do que o masculino. E não vai. Vai sofrer igual.
ALINE PELLEGRINO
ex-zagueira da Seleção Brasileira
A CBF repassou uma verba, mas algumas atletas relatam que o dinheiro não foi utilizado pelos clubes para pagamento de salários. O que sabe sobre isso?
Passo o dia todo acompanhando o que está acontecendo. Acho que este foi um auxílio importante. No feminino, a ajuda foi para 16 clubes da Série A-1 e 32 da Série A-2. Ainda não fiz a conta exata, mas se a gente somar o que deu certo e o que deu errado, eu diria que em 85% o objetivo foi alcançado. No percentual que não deu certo, temos de ver o motivo e corrigir. Aqui na federação, temos um modelo de gestão. Mas os clubes também precisam ter. Assim, a chance de dar errado é muito menor. Aí uma ação positiva acaba não tendo um resultado na ponta, porque faltam os “players” do futebol feminino dentro de clubes e federações. É aí que está o segredo. Precisamos criar esta estrutura de gestão para acelerar o desenvolvimento.
De maneira geral, como está a situação de renegociação de contratos, envolvendo clubes, jogadoras e patrocinadores?
No futebol feminino, não poderia ser diferente. No vôlei, no basquete, a sociedade como um todo está passando por recessão econômica. A federação ainda não tem o último repasse da cota de TV, então isso não vai para o clube, parte das receitas do feminino muitas vezes vem desta receita do clube, então vai gerando uma reação em cadeia. E não tem muito o que fazer. Estamos tentando nos reinventar, mas algumas coisas não têm jeito. Depende do retorno do campeonato. Acredito que todos estão cientes deste cenário. O que mais me preocupa é o que teremos em 2021. O clube tem de pensar como vai renegociar o contrato da atleta. Será que ela vai conseguir ter o mesmo salário? Qual é a minha receita para o ano que vem? O movimento tem que ser este.
Estamos tentando nos reinventar, mas algumas coisas não têm jeito. Depende do retorno do campeonato. Acredito que todos estão cientes deste cenário. O que mais me preocupa é o que teremos em 2021. O clube tem de pensar como vai renegociar o contrato da atleta. Será que ela vai conseguir ter o mesmo salário?
ALINE PELLEGRINO
ex-zagueira da Seleção Brasileira
Quais são as principais fontes de receita do futebol feminino? O que é possível fazer para criar receitas específicas?
A receita só vem se tiver um bom produto. A primeira coisa é um investimento para melhorar o produto. Por exemplo, aqui em São Paulo, na final do ano passado, a decisão do Estadual bateu recorde de público na Arena Corinthians. De 2016 para cá, conseguimos injetar um pouco mais de dinheiro para elevar o nível do produto através da Lei de Incentivo ao Esporte de São Paulo. No ano passado, tivemos um aporte de R$ 800 mil, conseguimos envelopar o campeonato com placas de publicidade, camisas e coletes de aquecimento para os clubes. Então, a hora que esse jogo está na televisão ou no streaming, ele está bem envelopado. Com a verba, começamos a fazer a transmissão pela internet com duas câmeras, repórter e comentarista. Então, produzimos o conteúdo. Tem que desenvolver e fomentar o futebol. É preciso criar estratégias comerciais, de marketing e comunicação e ir para o mercado trazer esta receita específica para o feminino. Claro que é natural vir um pouco da receita do futebol masculino, por exemplo, através de valor destinado por Fifa, Conmebol ou CBF.
Como será o desafio de fortalecer a cultura do futebol feminino com este cenário difícil?
Precisamos ter a nossa própria identidade, o nosso próprio público, que vai ser obviamente o público que gosta de futebol. Por exemplo, se colocar uma partida na preliminar de um jogo masculino, estarei falando com só um público. E eu quero criar um público do feminino. E, no ano passado, ficou muito claro nos dois jogos da final do Paulista. Quase 12 mil pessoas no Morumbi e 30 mil na Arena Corinthians. Acredito que tem momentos estratégicos que você usa o masculino, mas o feminino precisa de identidade própria. Neste jogo da Arena Corinthians, era um público diferente. Pessoas que estavam indo pela primeira vez, levando filhos e amigos. Garanto que havia muitas pessoas que não eram corintianas, mesmo com necessidade de ser jogo com torcida única. Não é o mesmo público. A característica é diferente. Por exemplo, o Corinthians tem rede social separada do masculino e feminino. Se o clube conversar direto com o seu público, pode ter grande presença no jogo.
Precisamos ter a nossa própria identidade, o nosso próprio público, que vai ser obviamente o público que gosta de futebol. Por exemplo, se colocar uma partida na preliminar de um jogo masculino, estarei falando com só um público. E eu quero criar um público do feminino.
ALINE PELLEGRINO
ex-zagueira da Seleção Brasileira
O estatuto da Conmebol prevê que os clubes, para disputarem a Libertadores ou Sul-Americana, precisam ter equipe feminina. Essa obrigatoriedade é boa ou pode ser um peso para alguns?
Reluto em chamar de obrigatoriedade. É um licenciamento de clubes que vem para melhorar a gestão. Para a CBF ter um representante mais qualificado na Libertadores, precisa que o clube melhore a gestão. Para a Conmebol ter um campeão da Liberadores que vá representar a entidade melhor no Mundial, ela precisa ter uma melhor gestão. A gestão passa por ter melhor gramado, categorias de base. Esse futebol das mulheres foi tirado do futebol, entre aspas, do homem, por proibições e uma série de fatores, e passou a se entender que as mulheres não fazem parte. Aí você precisa de estratégias para desenvolver e aumentar o número de praticantes. Isso aumenta o valor comercial. Porque esse futebol foi proibido no Brasil, na Inglaterra, na Espanha na época em que a mulher não votava, não tinha um monte de direitos. Estamos passando por um momento onde as pessoas estão revisitando tudo isso. Há direitos iguais. O futebol feminino é apenas um critério. Os clubes sabem fazer futebol. O que eu faço com o feminino? A mesma coisa.
É mais fácil viabilizar um time feminino em um clube com tradição no masculino ou em clubes sem tanta tradição?
Onde já tem estrutura. No caso da Ferroviária, campeã brasileira, está no Interior, mas tem uma estrutura gigante. O que o Grêmio e o Inter precisam fazer é olhar a grade de treinos da base e ajustar o feminino. É ajuste dentro de uma estrutura que já existe. Já tem academia, centro de treinamento. É muito mais fácil fazer acontecer.
O que o Grêmio e o Inter precisam fazer é olhar a grade de treinos da base e ajustar o feminino. É ajuste dentro de uma estrutura que já existe. Já tem academia, centro de treinamento. É muito mais fácil fazer acontecer.
ALINE PELLEGRINO
ex-zagueira da Seleção Brasileira
Estás otimista que o futebol feminino vai sair dessa?
No feminino, por não estar tão desenvolvido, tem uma facilidade para se adaptar no sentido de fazer as mudanças de formato e calendário. Não dá para imaginar o Brasil sem futebol, o torcedor sem a emoção do clube do coração, da paixão. Nós vamos nos adaptar, descobrir novos cenários. Eu tenho certeza que o futebol brasileiro vai voltar mais forte do que já era. Até porque vamos voltar com todo mundo sedento por futebol, então temos condições de ser criativos.