A equipe de Esportes do Grupo RBS promove uma série de entrevistas para discutir o Futebol do Futuro em um cenário de incertezas pós-pandemia. Hoje, o foco é a relação de trabalho entre jogadores e clubes, as perdas econômicas e o impacto da crise no campo jurídico. O entrevistado é advogado Marcos Motta, sócio-fundador de um escritório que atende cerca de 80 profissionais (entre eles Neymar), 23 clubes, associações e federações.
O que o senhor acha que teremos pela frente no cenário do futebol após a pandemia do coronavírus?
Nas primeiras 72 horas, foram momentos bastante complicados em termos do negócio do esporte de entretenimento. Eu já estava esperando que alguma coisa bem séria chegaria, pois trabalho também com o mercado chinês. Quando a pandemia começou a se alastrar no Brasil, tinha clientes retornando para a China. Então, durante este tempo, tive muito contato com colegas na Ásia para tentar antecipar situações. No início, houve uma correria para fazer algum tipo de projeção. Ali se operou três cenários: curto, médio e longo prazos. O curto ainda é administrável, o médio reputamos como complicado e o longo é catastrófico. O problema é que as previsões começaram a ser revisadas quase diariamente.
No início, houve uma correria para fazer algum tipo de projeção. Ali se operou três cenários: curto, médio e longo prazos. O curto ainda é administrável, o médio reputamos como complicado e o longo é catastrófico
MARCOS MOTTA
advogado especialista em contratos esportivos
É possível estabelecer prazos?
Estes prazos que foram estipulados lá atrás não fazem mais sentido, o que torna a situação bastante difícil em termos de contratos e contratações. Ou seja, houve uma ruptura em todo o mercado do esporte e principalmente no entretenimento. Sempre lembrando que estes dois mercados estão em segundo lugar no ranking de impacto sofrido pela covid-19, só atrás de hospitalidade e turismo, que tem uma conjugação direta com esporte e entretenimento. A primeira discussão que apareceu no nosso escritório foi consulta sobre cancelamentos e adiamentos de eventos. Tivemos questões que envolveram campeonatos, contratos de atletas, direitos de imagem, patrocínios, fornecedores, transmissões ao vivo. Isto impactou toda a cadeia produtiva.
Houve uma ruptura em todo o mercado do esporte e principalmente no entretenimento. Sempre lembrando que estes dois mercados estão em segundo lugar no ranking de impacto sofrido pela covid-19, só atrás de hospitalidade e turismo, que tem uma conjugação direta com esporte e entretenimento
MARCOS MOTTA
advogado especialista em contratos esportivos
A Lei Pelé foi um marco na relação clubes atletas. A pandemia pode implicar um novo paradigma?
Esta é uma orientação que procuramos dar aos nossos clientes, não só aos jogadores, mas a clubes, entidades organizadoras do esporte e empresas envolvidas na indústria. É uma situação absolutamente atípica. Em termos mais simples, existem três fontes de receita principais do esporte. A primeira é venda dos direitos de mídia e transmissão, depois a parte comercial, com parcerias de patrocínio e publicidade, e as receitas nos dias de jogos. Repare que estes três pilares que sustentam economicamente a indústria foram abalados. E é muito importante que todos que participam deste mercado entendam como é que a cadeia produtiva funciona. Com um entendimento um pouco mais amplo, você consegue explicar os impactos e existe uma compreensão. Sempre orientamos para procurar entender e adaptar. Qualquer parte, o clube, o jogador, o patrocinador, a empresa de material esportivo que chegar em uma mesa de reunião e apontar uma cláusula do contrato, vai perder. O momento é de fluidez, o mercado é volátil, incerto. Repare que não temos transmissões ao vivo, e isto é fundamental. E não temos calendário. Ou seja, qualquer tipo de planejamento se perdeu no tempo e é inócuo.
Como se estabelecem as negociações entre atletas e clubes?
Como participamos de várias negociações, representando atletas no mundo inteiro, em grandes clubes europeus, no sentido da renegociação, adotamos a mesma prática no Brasil. As medidas provisórias que foram publicadas pelo governo não atingem o futebol, pois o futebol tem uma legislação própria, que é a Lei Pelé. Ao mesmo tempo, há uma dificuldade inicial na negociação com os sindicatos. Em alguns clubes, é uma negociação individual. Em outros, com líderes do elenco. Em tese, o que não se pode é uma atitude unilateral, um corte abrupto de salário sem negociação. Sempre tem de ocorrer uma negociação. Quem tentou fazer de forma unilateral perdeu ou vai perder, no futuro, na Justiça. O negociado deve sobrepor o legislado. A mensagem é sentar, negociar, entender e ajustar.
Os clubes brasileiros sempre aguardam a janela de transferências para a Europa. Qual é a sua projeção para este ano?
Desde a Segunda Guerra Mundial, nunca houve nada parecido. Recebemos um estudo de que existem mais de 120 mil contratos suspensos no mundo na área do entretenimento, envolvendo mais de 5 mil marcas. O mercado está todo impactado, e é claro que isso terá reflexo no mercado de transferências. Em janeiro, dei uma aula presencial no curso de administração esportiva do Real Madrid e disse que nós temos a tendência de viver em uma bolha no futebol. E esta bolha ia estourar. A única pergunta que deveria ser feita é em que circunstâncias isto aconteceria. E estourou na pior possível, em uma pandemia. Acho que os clubes que estiverem mais estruturados e conseguirem uma fluidez nas suas contas vão conseguir respirar melhor quando houver o retorno. Vai ser um impacto muito grande, tanto na ponta compradora, quanto na ponta vendedora. O mercado já vinha se ajustando, mas agora houve uma ruptura total.
Desde a Segunda Guerra Mundial, nunca houve nada parecido. Recebemos um estudo de que existem mais de 120 mil contratos suspensos no mundo na área do entretenimento, envolvendo mais de 5 mil marcas
MARCOS MOTTA
advogado especialista em contratos esportivos
Há números dos prejuízos?
Se a gente considerar as estimativas de perdas totais das grandes ligas europeias, estamos falando em algo de até 4 bilhões de euros se os campeonatos não forem finalizados. Um ponto importante é que os grandes clubes da Inglaterra, com um potencial de compra absurdo, tem 2 bilhões de euros no mercado em valores que eles ainda devem de compras anteriores. Se houver um colapso do futebol inglês, há um colapso que desmorona a cadeia produtiva do futebol, principalmente considerando mercados de venda como o Brasil, onde os clubes dependem desta negociação. O poder de barganha vai cair bastante. Os clubes brasileiros terão dificuldade. A covid-19 não inventou nada, apenas acelerou os processos. O que era bom, vai ter mais facilidade de passar por isso, e o que era ruim, em termos de administração, terá muita dificuldade para sobreviver.
Qual é a sua avaliação sobre a maneira como Grêmio e Inter estão sendo administrados?
Advogamos para alguns clubes que estão na vanguarda do futebol brasileiro, com uma administração profissional e realista. Fui diretor do Flamengo em um momento de situação adversa. Sobre o Grêmio, trabalhei para o clube naquela briga com o Ronaldinho em 2000. Fui convidado para uma palestra na Unisinos, há dois anos, e percebi que o clube teve uma mudança na dinâmica de administração. O Inter também está fazendo bem o dever de casa. Alguns estão adiantados, como Athletico-PR. Bahia e Fortaleza têm boas administrações. O Flamengo é o carro-chefe da mudança. Quem não arrumou a casa, perderá o bonde da história e dificilmente irá se recuperar. É bom os torcedores se acostumarem, porque pode ser que tenhamos clubes famosos que, se caírem para a Segunda Divisão, dificilmente sobreviverão.
Se a gente considerar as estimativas de perdas totais das grandes ligas europeias, estamos falando em algo de até 4 bilhões de euros se os campeonatos não forem finalizados
MARCOS MOTTA
advogado especialista em contratos esportivos
Os contratos de atletas que forem terminando em futuro próximo terão de ser renovados em outras condições?
Sem dúvida. Existe uma equação sendo refeita. Os torcedores vão querer os jogadores, e o clube terá de dizer “não”, porque não será saudável financeiramente. Todos terão de entender que isto deve ser feito agora. Os clubes precisarão ser cautelosos. Terá um impacto direto no que é pago aos jogadores. Quando você paga muito, é porque está recebendo muito, apesar de alguns clubes brasileiros não respeitarem esta equação. Com a situação da covid-19, eles serão forçados a se readequar. Além disso, os grandes europeus pensarão duas vezes antes de realizar grandes contratações. Não faz o menor sentido anunciar uma contratação cara em meio à pandemia. Isto vai jogar para baixo os valores. Será um ajuste forçado de mercado.
O que a volta do futebol poderá trazer de impactos? Os Estaduais poderão perder força?
Não podemos confundir volta aos treinos com volta aos campeonatos. Tem clubes que voltariam agora e tiveram proibição dos governos. O futebol funciona como uma roda. Neste momento, não está girando. Mas é importante verificar por quanto tempo esta roda ficará sem girar e quais são os impactos. A volta ao treino pode ser um indicativo que existe alguma possibilidade. Os Estaduais estão cada vez mais prejudicados. Eu acho que estes terão bastante dificuldade em encontrar datas para retorno. O Brasileirão ainda dá para salvar. Mas não se pode fazer nenhum tipo de movimento sem ter alguém para assumir a responsabilidade por este retorno. Todos têm de ser ouvidos, mas com validação expressa das autoridades de saúde.