O comentarista esportivo e ex-diretor de Redação da Revista Placar Juca Kfouri é o terceiro entrevistado da série Futebol do Futuro, uma proposta da equipe de Esportes do Grupo RBS para debater cenários de pós-pandemia.
Com quase cinco décadas de atuação na imprensa esportiva, Juca critica a postura da CBF no socorro aos clubes, defende cautela na retomada das competições, sugere que sejam revistos os Estaduais e prega o espelhamento do calendário brasileiro com o europeu.
Qual é a sua posição sobre a volta do futebol no Brasil?
Esta é uma questão emergencial: saber quando o futebol volta. Essa é a pergunta de 10 milhões de dólares. Estamos vendo este esforço, que não é da CBF — a entidade está sendo constrangida pelo governo federal a fazer a retomada dos Estaduais como um sinal de normalização. Acho isso uma profunda irresponsabilidade. Vocês revelaram o nome do conselheiro do Bolsonaro. O Renato Portaluppi, que é PhD em Edipemiologia (risos), sensatamente não aconselhou a volta do futebol. É uma loucura voltar agora. Vi uma entrevista do diretor do departamento médico da Fifa propondo dar cartão amarelo para o jogador que cuspir na grama. É um gesto realmente de se tirar o chapéu. Este é um hábito de 11 entre 11 jogadores. Como achar que, de uma hora para outra, isso acabe? Só estou esperando ele sugerir que, na hora do gol, os jogadores não se abracem. Ou proibir o jogo de corpo. Ou que na barreira os jogadores fiquem a dois metros um do outro. Isto tudo revela a insegurança de uma volta apressada. Se o futebol voltar, e um jogador pegar covid-19 e morrer, o que diremos? “E daí? Eu também vou morrer um dia.” É mais uma irresponsabilidade do governo federal.
É uma loucura voltar agora. Vi uma entrevista do diretor do departamento médico da Fifa propondo dar cartão amarelo para o jogador que cuspir na grama. É um gesto realmente de se tirar o chapéu. Este é um hábito de 11 entre 11 jogadores. Como achar que, de uma hora para outra, isso acabe?
JUCA KFOURI
comentarista esportivo
Como você acha que será a reação dos demais envolvidos, como jogadores, clubes, federações e governos estaduais?
Acho que a oposição virá dos governos. Não temos razão para achar que os clubes façam resistência. Sobre os jogadores, os sindicatos são muito frágeis. Nunca vimos uma grande mobilização. Os governos estaduais, estes têm poder de dizer não. Há clubes que querem voltar. O Corinthians está sendo alvo de ataques dos seus credores e precisa, pelo menos, receber o que está suspenso pela TV. O Flamengo também quer voltar. Mesmo milionário, tem uma folha alta. Não acredito que os jogadores se posicionem quanto a isso. Pode ser uma declaração ou outra, mas em esforço coletivo não acredito. Em São Paulo, por exemplo, se houver um mínimo de coerência, prefeitura e governo não aceitarão.
Tivemos um momento em que o Paulo André, hoje diretor do Athletico-PR, representava os jogadores. Falta uma liderança como ele hoje?
Falta, sim. Mas olha só, para se ter uma ideia da fragilidade. Mesmo com ele e o Bom Senso FC, teve o episódio de uma invasão ao CT do Corinthians, quando um grupo de torcedores quis bater nos jogadores. Foi estranho, as câmeras internas estavam misteriosamente desligadas. Nunca se soube quem invadiu. O Paulo André estava no Corinthians, e propôs aos jogadores que não jogassem no dia seguinte. Houve uma adesão inicial. Aí o presidente disse que, se eles não jogassem, a TV não pagaria e o clube passaria a ter problemas. Todos enfiaram a viola no saco e foram jogar. Era um momento exemplar para dar o basta para este tipo de atitude. Nem com ameaça física teve uma liderança para parar um jogo. Não vejo ninguém no futebol brasileiro com capacidade de liderança.
Diante do quadro atual, você é a favor de algum tipo de mudança como a adequação ao calendário do futebol europeu?
Faço questão de dizer que não é só ao calendário europeu, é ao calendário quase mundial. É o calendário do primeiro mundo. Há anos eu defendo isso. É uma oportunidade. Mas não vejo que deveria ser por causa de uma emergência, e sim por uma série de outras questões, como equiparar janelas de transferências sem tanto prejuízo, para que se pudesse solucionar o calendário da Seleção Brasileira nas datas Fifa sem prejuízo para os jogos dos nossos campeonatos. Mas confesso que não tenho muita esperança. São as tais jabuticabas brasileiras. Parece que só nós estamos no passo certo, e o resto do mundo no passo errado.
É hora de rever os Estaduais? A crise reforça ou fragiliza estas competições?
Não se trata de reforçar ou fragilizar os Estaduais. Trata-se de aproveitar a crise para justamente fazer esta adequação de calendário que falei há pouco. E com isso dar aos Estaduais o peso e a dimensão que estes campeonatos devem ter. Ou seja, competições para equipes que não estão nos nacionais em toda a temporada. Mas sem querer que os grandes clubes participem dos Estaduais.
Não se trata de reforçar ou fragilizar os Estaduais. Trata-se de aproveitar a crise para justamente fazer esta adequação de calendário. E com isso dar aos Estaduais o peso e a dimensão que estes campeonatos devem ter
JUCA KFOURI
comentarista esportivo
Sobre a questão salarial dos jogadores, você pensa que teremos um grande impacto no futuro do futebol?
Todos, no mundo inteiro, estamos fazendo sacrifícios. Quase todas as empresas estão fazendo readequação, cortando salários e, infelizmente, demitindo. Gente que lucrou a vida inteira parece ser incapaz de arcar com prejuízo durante dois ou três meses e acaba caindo nas costas do trabalhador. Mas essa é outra resposta que vale 10 milhões de dólares. Que mundo vamos ter depois da pandemia? Será que vamos ter um mundo mais solidário? Teremos a inteligência de perceber o quanto cada um de nós é frágil, e o quanto dependemos do outro? Tudo isso vamos ver como ficará após a pandemia. Infelizmente, temos motivos para achar que o projeto da humanidade é um projeto que não deu certo. Eu li, recentemente, um depoimento de um morador de Nova York sobre como foi depois do 11 de setembro. Ele falava que, na primeira semana, foi tudo diferente, mas a partir do oitavo dia tudo voltou ao normal e cada um já estava se preocupando apenas com seus problemas. Mas me parece claro que temos no mundo do entretenimento, do futebol, do basquete, do tênis e da música muitos salários astronômicos. Até se justificam, porque são trabalhadores que levam até 100 mil pessoas para vê-los nos estádios e bilhões para acompanhá-los pela televisão. São trabalhadores especiais, e o sacrifício neste momento não vai prejudicá-los. Mas como este mundo vai se comportar depois, eu realmente não sei, e fico muito curioso para saber.
Você acredita em salários mais baixos? E poderemos ter uma queda de qualidade no futebol brasileiro?
Ao que tudo indica, vamos ter de fato uma diminuição. Mas não apenas no Brasil. Eu acho que o mundo inteiro vai se dar conta de certos absurdos salariais que existem não só no futebol, mas no esporte em geral.
Ao que tudo indica, vamos ter de fato uma diminuição. Mas não apenas no Brasil. Eu acho que o mundo inteiro vai se dar conta de certos absurdos salariais que existem não só no futebol, mas no esporte em geral.
JUCA KFOURI
comentarista esportivo
Que análise é possível fazer do auxílio aos clubes, por parte de entidades como Fifa, Conmebol e CBF neste momento de crise?
Eu vi o resultado do balanço da federação do Rio de Janeiro. Deu superávit de R$ 2 milhões. Um pouco superior ao de um clube como o Palmeiras. Eu pergunto, qual é o time da federação do Rio? Quem vai ver a federação jogar futebol? Quem vai ver o Palmeiras a gente sabe. Há uma total inversão de valores. A CBF se orgulha no seu balanço de ter faturado quase R$ 1 bilhão no ano passado. A CBF tem um time, a Seleção Brasileira. Mas fruto de que? Quem disponibilizou estes jogadores? Então, temos federações ricas, a federação aqui de São Paulo é rica. E clubes de pires na mão. É uma total inversão de valores. Aquilo que deveria ser meio, virou fim. As federações deveriam ser meros cartórios. É só aqui que existem federações estaduais, e sabemos o poderio que têm. São elas, em última análise, que comandam o futebol brasileiro, pois tem mais peso para eleger o presidente da CBF. Os clubes, de alguma maneira, baixam a cabeça para isso. Reclamam no privado, mas não são capazes de mudar esta situação.
O futebol feminino, ainda embrionário, está ameaçado no Brasil? Como garantir a manutenção das equipes?
Vai sofrer, sem dúvida. E vai sofrer ainda mais. Se o masculino terá dificuldades, imagina o feminino, ainda incipiente. O cenário não é animador.
As federações deveriam ser meros cartórios. É só aqui que existem federações estaduais, e sabemos o poderio que têm. São elas, em última análise, que comandam o futebol brasileiro, pois tem mais peso para eleger o presidente da CBF.
JUCA KFOURI
comentarista esportivo
A Lei Pelé foi um marco na relação entre clubes e atletas. A pandemia poderá implicar em um novo marco nas relações profissionais?
Tem um Projeto de Lei do deputado federal Arthur Maia (DEM-BA) que prevê a possibilidade de redução de 50% dos salários dos jogadores, pagamento parcelado da multa de rescisão e contratos de apenas um mês de duração (o Projeto de Lei 2125/20 também suspende o pagamento das parcelas devidas pelos clubes ao Programa de Modernização da Gestão e Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, o Profut). Isto é um verdadeiro calote nos jogadores. Se passar, realmente muda. E muda para pior. Agora resta saber se haverá reação dos sindicatos dos atletas, que existem formalmente, mas não existem na prática.