O jogo entre Figueirense e Cuiabá, na última terça-feira (20), pela Série B, foi primeira partida na história das duas principais divisões do Brasileiro que não aconteceu porque um clube não pagou salário a seus jogadores. Os atletas da equipe catarinense se negaram a atuar, e o duelo terminou em WO.
— Não foi fácil tomar a decisão. A situação é muito difícil. As pessoas julgam, apontam dedo, incitam violência em redes sociais — disse o volante Zé Antonio, representante dos jogadores.
No desembarque da partida, eles receberam o apoio de torcedores no aeroporto. Em nota, a diretoria disse que a decisão de não jogar "é exclusiva dos jogadores".
Os atletas do clube catarinense iniciaram uma greve por atrasos de salários, direitos de imagem e não recolhimento de tributos por parte do Figueirense, que é uma sociedade anônima desde 2018 -atualmente controlado pelo grupo Elephant. O clube de Florianópolis é uma raridade no futebol brasileiro.
Há um movimento na Câmara de Deputados para a aprovação de um projeto de lei que incentive a transformação de clubes em empresa. Um dos defensores da medida é o presidente da casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que defendeu a ideia em visitas à CBF e ao São Paulo neste mês.
Figueirense e o Botafogo de Ribeirão Preto são os únicos nas duas principais divisões do Nacional que viraram empresa. A equipe do interior de São Paulo está na quarta colocação da Série B e não vive a instabilidade financeira do clube catarinense.
O estopim para o protesto na equipe de Florianópolis foi a ausência de quitação de dois meses de direito de imagem e um salário registrado em carteira. Mas há outras queixas.
— Não começou de uma hora para a outra. São reiterados atrasos. O clube deixa passar três meses e paga um salário. Depois espera quatro meses e paga dois. Chega a hora em que o atleta fica com a faca no pescoço — afirma o advogado Filipe Rino, representante legal do grupo.
Pessoas próximas aos jogadores disseram à reportagem que alguns deles venderam carros para pagar contas acumuladas. Há casos de atrasos de pensão alimentícia, e garotos das categorias de base estão ameaçados de despejo por não receberem a ajuda de custo. Nesta quarta (21), a categoria sub-20 também entrou em greve.
O Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina afirma investigar o Figueirense por casos de atrasos desde 2015. A causa hoje tem valor de R$ 200 mil.
Ao desembarcar em Florianópolis nesta quarta, o elenco era esperado por cerca de 50 integrantes da torcida organizada do time, que aplaudiu os atletas.
— Apoiamos a medida tomada por eles, que estão querendo o bem para o futuro do clube, assim como nós. A Elephant (que administra o Figueirense) é uma farsa. Já demos varias votos de confiança para eles, e nada aconteceu, os compromissos não foram quitados e cumpridos — disse Bruno Machado, diretor da torcida Gaviões Alvinegros.
O Figueirense, que estava na Série A até 2016, acumula problemas com atrasos. Após uma empresa de ônibus contratada pelo clube deixar de prestar serviços por falta de pagamento, funcionários tiveram de chamar carros de aplicativos para levar os atletas aos treinos.
— Após o jogo contra o CSA, que perdemos em casa (em setembro de 2018), a diretoria armou para dois torcedores me ameaçarem e xingarem, para me forçar a pedir para ir embora e eles não terem que pagar minha multa (rescisória) — disse Milton Cruz, um dos treinadores que aguardam receber salários atrasados do Figueirense.
O atual gestão do clube disse desconhecer o fato citado pelo ex-técnico.
O presidente do Conselho Deliberativo do Figueirense, Francisco de Assis, afirma ter havido "orientação externa" na decisão dos jogadores em não entrar em campo.
De acordo com o cartola, além dos pagamentos, os atletas queriam que o presidente da gestora do clube, Cláudio Honigman, fosse destituído.
— Há uma coincidência aí. Esse advogado que está orientando os jogadores nesse processo todo (Filipe Rino) mantém 12 ações trabalhistas contra o Figueirense. Parece que está havendo um oportunismo para tentar resolver outras questões — disse dirigente.
Segundo Assis, em julho um termo de compromisso foi assinado entre a Elephant e o Conselho de Administração do Figueirense, com um cronograma dos pagamentos.
— Até o próximo dia 28, a empresa se comprometeu a pagar os salários. Se isso não acontecer, haverá um rompimento automático do acordo com a empresa. Isso é contratual. Qualquer atitude que tomamos tem que ser uma atitude concreta. Não podemos tomar uma decisão (romper contrato com o grupo) que depois pode ser revertida na Justiça — disse.
No ano passado, a holding Elephant assumiu dívidas de R$ 85 milhões do clube e comprou por duas décadas os 95% da sociedade anônima, com promessa de investimentos. Pelos próximos 19 anos, recolherá os lucros da sociedade, da qual o clube Figueirense tem 5%. Além disso, detém todos os ativos e passivos relativos ao futebol da agremiação.
Procurado, o dono da Elephant, Claudio Vernalha, não respondeu aos contatos da reportagem para se pronunciar sobre o caso.
Antes da partida entre Cuiabá e Figueirense, apenas três jogos do Campeonato Brasileiro não aconteceram por WO. Um deles, entre Coritiba e Santos, em 1989, pela Primeira Divisão, não teve relação com atrasos de pagamentos.
Em 2014, pela Série D, os jogadores do Grêmio Barueri se recusaram a jogar contra o Operário do Mato Grosso. Reclamavam de quatro meses de salários atrasados. Três anos depois, o Mogi Mirim deu WO em jogo diante do Ypiranga, pela Série C, também em protestos contra falta de pagamentos.