A Corte Arbitral do Esporte em Lausanne, na Suíça, determinou que mulheres com elevados níveis de testosterona – muito acima da média normal – não podem competir em provas femininas de corrida com distâncias entre 400 metros e 1,6 quilômetro, a não ser que tomem medicamentos supressores da produção desse hormônio.
A decisão impediu que Caster Semenya, de 28 anos, corredora de elite e campeã olímpica pela África do Sul, participasse dessas corridas devido ao fato de que seus índices de testosterona são naturalmente muito altos. Ela vem desafiando tentativas de desqualificá-la para competir como mulher.
A ciência que fundamenta a decisão é complicada, levantando questões difíceis sobre biologia, justiça e identidade de gênero.
O que é a testosterona? De onde ela surge nas mulheres?
É um hormônio androgênico que causa uma variedade de efeitos sobre o corpo. Todo mundo produz testosterona, mas a quantidade fabricada pelas mulheres não chega nem perto da que os homens produzem.
Neles, a maior parte da testosterona é produzida nos testículos; o restante, nas glândulas adrenais, localizadas acima dos rins. Nas mulheres, a testosterona também é fabricada nas glândulas adrenais e nos ovários. Contudo, a capacidade de produção dos testículos é muito maior: no corpo masculino esse hormônio aparece na razão de 295 a 1.150 nanogramas por decilitro de sangue; já no feminino, de 12 a 61 nanogramas por decilitro de sangue.
Como isso influencia os atletas?
A testosterona "desenvolve músculos", explicou o dr. Benjamin D. Levine, que estuda as diferenças entre os sexos relacionadas ao desempenho atlético no Centro Médico da Universidade do Texas. "O hormônio forma o músculo esquelético e o cardíaco, além de aumentar o número de glóbulos vermelhos."
Os efeitos são percebidos tanto pela presença natural do hormônio como pela introdução via medicações. Em um dos exemplos mais infames, as mulheres que representaram a Alemanha Oriental nos Jogos Olímpicos dos anos 70 e 80 obtiveram um sucesso espantoso após terem sido dopadas inadvertidamente com esteroides anabolizantes, incluindo a testosterona.
"A ciência é bem clara: um corpo sob o efeito de esteroides androgênicos tem vantagem na performance", declarou o dr. Aaron Baggish, do Hospital Geral de Massachusetts, especialista em efeitos da testosterona.
Mas organismos distintos sempre apresentam vantagens competitivas variáveis. Por que esse hormônio está recebendo mais atenção?
Grande parte dos especialistas médicos acredita que a testosterona é excepcional, diferente de um nadador que tenha um grande alcance de braço ou qualquer outra vantagem natural física.
Em um estudo, Levine submeteu homens e mulheres jovens e sedentários a um ano de treino de atletismo. No começo, ambos os sexos apresentavam um coração com tamanho similar. Um ano depois, o coração dos homens estava muito maior, consequência do desenvolvimento muscular ocasionado pelo hormônio.
Os efeitos do hormônio são exacerbados entre os atletas de elite, modificando o corpo deles de uma maneira capaz de causar uma enorme diferença em desempenho. Campeões masculinos em qualquer esporte são sempre mais fortes e mais rápidos do que as mulheres que estabelecem recordes mundiais.
A diferença pode ser considerável. Corredoras de elite jamais sairiam vencedoras se competissem contra corredores de elite, segundo informou Doriane Coleman, antiga corredora de meio-fundo e hoje professora de direito na Universidade Duke. Ela analisou os melhores desempenhos de três atletas mulheres que conquistaram as melhores marcas da história na corrida de 400 metros (sem injetar testosterona). O resultado foi que, apenas nas corridas de 400 metros de 2017, mais de 10.000 homens e garotos conseguiram tempos melhores do que elas obtiveram em toda a vida.
Por que o tribunal do esporte deliberou apenas sobre as competições que incluem corridas de 400 metros a 1,6 quilômetro?
A decisão é consistente com a exigência de que ela deveria ser tomada em cima de evidências estritamente específicas. E um recente estudo concluiu que existe um número excessivo de atletas que se identificam como mulheres, mas que possuem níveis masculinos de testosterona participando de eventos de corrida feminina de meio-fundo.
Coleman informou que, nessas provas, os resultados das atletas "indicam que elas têm uma clara vantagem de desempenho", tendo conquistado 30 medalhas em corridas olímpicas e mundiais, com distâncias variando entre 400 e 1.500 metros. Mas a incidência delas na população geral é de apenas 1 em 20.000, ou seja, houve uma super-representação na razão de 1.700 no pódio, conforme concluiu o estudo.
Os cientistas acreditam que esse nível exacerbado de testosterona dá às mulheres vantagem competitiva em qualquer esporte. Mesmo assim, especialistas como Baggish e Levine – que foram consultados pela Associação Internacional de Federações de Atletismo – defenderam uma deliberação restrita, visto que é nas corridas de meio-fundo que a testosterona claramente faz a diferença.
[E]specialistas como Baggish e Levine – que foram consultados pela Associação Internacional de Federações de Atletismo – defenderam uma deliberação restrita, visto que é nas corridas de meio-fundo que a testosterona claramente faz a diferença.
Uma decisão como essa não é incompatível com as definições cada vez mais amplas que a sociedade está estabelecendo para a discussão de gêneros?
A deliberação do tribunal não se refere à aceitação social de intersexuais ou transgêneros, esclareceu Coleman; trata-se de permitir que as atletas femininas de elite possam competir em nível de igualdade.
Isso, contudo, levanta outra questão interessante: por que segregamos os atletas de acordo com ideias ultrapassadas de gênero?
"A questão é qual o motivo de termos esportes femininos. Acho que eles são fundamentais para proteger as mulheres, para dar a elas uma chance de serem bem-sucedidas", argumentou Levine. Entretanto, ele concordou que, com o limite estabelecido de testosterona, "algumas mulheres vão se sentir excluídas".
Para resolver isso, ele apresentou uma proposta modesta: os atletas poderiam ser divididos em duas categorias – uma feminina e uma "aberta"; nesta segunda, poderiam competir homens e mulheres com níveis de testosterona acima da média feminina considerada normal. Dessa maneira, ele concluiu, "qualquer pessoa com vontade de competir poderia fazê-lo".
Por Gina Kolata