Nascida em Porto Velho (RO), Thacyane Garcia de Lima, 16 anos, levou para São Paulo há três anos o sonho de tornar-se uma nadadora profissional. Hoje ela treina no Corinthians, adaptou-se à capital paulista e acumula bons resultados no nado borboleta, sua especialidade.
No fim de 2018, a adolescente descobriu que, apesar de preencher os requisitos para receber o Bolsa Atleta, benefício pago pelo governo federal a que ela teve direito nos últimos anos, não estava na lista de contemplados para 2019. No fim do governo Michel Temer (MDB), o Ministério do Esporte (hoje transformado em secretaria especial) publicou uma relação de 3.058 atletas que receberão a bolsa.
Em 2017, eram 5.866.Com o corte no orçamento do programa, de R$ 79,3 milhões para R$ 53,6 milhões, o governo começou a seleção por quem ganha mais (atletas olímpicos e internacionais). O dinheiro acabou no meio da lista de esportistas nacionais, e os benefícios de base e estudantil foram cortados. Esse critério estava preestabelecido no edital.
Até então, Thacyane recebia o benefício da base. Este seria o primeiro ano em que ela poderia integrar a categoria nacional, o que geraria aumento de R$ 370 para R$ 925. A nadadora, que divide um apartamento com duas amigas, recebe salário do Corinthians e tem ajuda dos pais para pagar as despesas. Ainda assim, contava com a bolsa principalmente para comprar seus equipamentos. Um maiô profissional para competição pode chegar a R$ 2.000.
— Foi um choque — ela diz sobre o momento em que soube que não receberia mais a bolsa. — No ano passado tive várias lesões, fiquei de cabeça baixa, e no final do ano estava mais confiante porque receberia o dinheiro do Bolsa Atleta, que viria por causa de um grande esforço meu.
Em abril, ela disputará o sul-americano juvenil atrás de um resultado que permita pleitear a bolsa internacional.
No Corinthians, também treina o nadador João Paulo Silva, 17 anos. Sua história é parecida com a de Thacyane. Mudou-se de Cuiabá (MT) para São Paulo, divide apartamento com colegas e tem ajuda governamental. No caso dele, do Bolsa Talento, programa do governo paulista.
Mesmo após ter sido eleito pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) destaque dos Jogos Escolares da Juventude 2018, ele teme ser atingido futuramente, se a tendência de cortes for ampliada para todas as esferas nos próximos anos. Se em um esporte consagrado como a natação os cortes preocupam, modalidades emergentes, com menos visibilidade e patrocinadores, o baque pode ser maior.
Sem Bolsa Atleta em 2019, Murilo Rottmann Bandeira, 16 anos, que treina no clube gaúcho Sogipa, vê mais longe a chance de transformar o tênis de mesa em carreira. Fã de Hugo Calderano, brasileiro que hoje é o sexto melhor do mundo, ele usava o dinheiro da bolsa em viagens para torneios nacionais.
Marco Bandeira, pai de Murilo, afirma que a família pode ajudar com a compra de raquetes e borrachas, além de inscrições em torneios, mas em viagens longas o orçamento aperta. Além disso, para ele o recebimento da verba do governo ajuda no desenvolvimento pessoal do atleta.
— Se você tem uma bolsa do seu país, tem que retribuir de alguma forma, treinando, tentando atingir ao máximo seus objetivos e tendo um comportamento exemplar. Se você está recebendo alguma coisa do governo, não é um presente, você tem mais responsabilidade agora — afirma.
Presidente do Comitê de Ética do COB, o advogado Alberto Murray critica a forma como o governo anunciou os cortes, no dia 28 de dezembro.
— Muitos atletas programaram seu ano esportivo baseados nisso. Achei uma falta de programação ou até mesmo deslealdade com eles não terem avisado antes. A decisão orçamentária não vem no último dia de governo — declara.
Murray também faz críticas ao formato atual do programa, por ter pouco controle sobre quais esportistas realmente possuem perspectiva de desenvolvimento.
— Precisa de uma revisão muito detalhada. Se não tem dinheiro como era antes, tudo bem, mas dentro do que tem precisa tentar fazer da melhor maneira possível — afirma.
Os cortes fizeram com que pais de nadadores do Corinthians se mobilizassem para entrar com recursos junto ao governo federal. Eles já atuaram em outros momentos, como em protestos contra a medida provisória do governo Michel Temer que tiraria recursos do esporte e acabou revogada. A crítica deles é que o programa priorizou o pagamento de bolsas a vários atletas com carreiras consagradas.
Estão na lista campeões olímpicos com a seleção de vôlei em 2016, como o ponteiro Lipe, 34, e o central Lucão, 32, além do tenista Thomaz Bellucci, 31, e da jogadora de futebol Marta, 32, seis vezes eleita melhor do mundo. Procurados, eles criticaram os cortes para a base, mas defenderam o recebimento da bolsa olímpica, de R$ 3.100 mensais. A assessoria de Marta não retornou o contato.
— A importância não é tão grande hoje. Se eu tivesse recebido a ajuda quando estava começando teria peso maior. Quando você chega lá em cima os gastos são tão grandes que esse valor acaba sendo pequeno, mas sempre ajuda, ainda mais pelo momento que estamos passando, pós-Olimpíada, mais difícil de conseguir patrocínio — afirma Bellucci.
Em valores brutos, ele acumula US$ 5,3 mi (R$ 19,9 mi) em premiação na carreira.
— As despesas de um atleta de base não são comparadas às de um atleta olímpico. É básico que existam remunerações iniciais que aumentam com a evolução e mérito do atleta — diz Lipe, que joga no Sesi-SP.
Ele diz que mesmo hoje a bolsa tem muita importância na sua carreira.
— Parte das 4 cirurgias que realizei são absorvidas por esse tipo de auxílio.
Para Lucão, hoje no Taubaté, a bolsa é um direito adquirido.
— Não é porque um recebe que o outro deixa de receber.
O secretário de esporte do governo Bolsonaro, Marco Aurélio Vieira, não comentou o tema. A pasta estuda uma recomposição orçamentária que permita pagar a bolsa a todos que deveriam ter sido contemplados em 2019.