Em sua primeira entrevista desde a demissão do Palmeiras, no final de julho, Roger Machado falou ao público que lotou o Gaúcha Sports Bar para a edição de agosto do programa Cardápio do Zé, apresentado pelo repórter José Alberto Andrade, sobre a sua relação com o futebol, preconceito racismo e a vida de técnico no Brasil. O ex-treinador do Grêmio, Atlético-MG, Novo Hamburgo e Juventude, relembrou a carreira da época de juvenil no Olímpico até os dias de hoje. Roger justifica que esta sede por conhecimento é fruto de um hábito pouco comum no país: ler.
A paixão pela leitura não se limita ao futebol. Desde criança, nasceu o hábito que foi cultivado ao longo dos 43 anos de vida, com 25 anos dedicados ao esporte. Entre a rotina de aeroportos, hotéis e viagens, chega a "folhear cinco, seis livros" para passar o tempo. Sem estar comandando uma equipe, Roger valoriza o tempo com a família. O foco, agora, é a atenção às filhas Júlia e Gabriela, além da esposa Camile. Sem um convite atrativo de um clube do Exterior até o momento, sua ideia é voltar a treinar apenas no ano que vem. Confira as ideias de Roger Machado:
O que aconteceu na demissão do Palmeiras?
De modo geral, a ideia do clube era interromper um trabalho que nas três competições em andamento, havia se classificado como primeiro geral às oitavas da Libertadores, passado das oitavas da Copa do brasil e que estava entre sexto e sétimo no Brasileirão. Com 66% de aproveitamento, o clube entendeu que era necessária a troca pela instabilidade do momento. De certa forma estamos acostumados com estes revezes no futebol, mas fui pego de surpresa.
Você sucedeu Felipão no Grêmio, foi sucedido pelo Renato no Grêmio e agora entrou o Felipão no Palmeiras. Como são essas relações?
Como jogador, tive a oportunidade de ser forjado pelo Felipão durante o período inicial da minha carreira e depois quando convocado para a Copa América de 2001. No começo da carreira, você deseja apenas sobreviver, desfrutei pouco do que poderia aprender com o Felipão. Com o Renato, por ter trabalhado como auxiliar dele nas suas duas passagens anteriores, e de ter sido seu jogador no Fluminense, absorvi mais o que tinha para me oferecer. Do ponto de vista pessoal, meu contato é pequeno com os dois. A última oportunidade que conversei com o Renato, e foi brevemente, foi no jogo entre Grêmio e Palmeiras. Com o Felipão, já tem uns cinco anos que não tenho contato mais próximo. Mas por mais que a distância, e as nossas atribuições nos mantêm separados, existe um carinho muito grande por eles. Dois indivíduos que me ajudaram muito, e não só como profissional, mas também como pessoa.
Segue torcendo pelo sucesso do Grêmio e do Palmeiras?
Não tenha dúvidas disso. No futebol brasileiro você pega um trabalho e começa do zero. você pega o legado de alguém. Talvez não do ponto de estratégia, mas tático ou de escolhas. Quando substitui o Felipão no Grêmio, todos os jogadores jovens que utilizei, tinham sido selecionados pelo Felipão. Talvez a inexperiência deles tenha causado a instabilidade que causou a saída do Felipe do cargo. Se tivesse neste processo, talvez aconteceria a mesma coisa. Ele deu experiência para muitos jovens que utilizei depois. Criterioso como é, sabia que o Felipão teria feito um bom trabalho. Não tenho dúvida que no futebol brasileiro trabalhamos a várias mãos. É a sucessão de um trabalho anterior.
Você já enfrentou resistência pela forma como fala do futebol...
Preconceito, né?
Que tipo de preconceito você já sentiu no futebol?
Não no futebol, mas de forma geral. No nosso país, que carece tanto de educação, por vezes alguém que busca conhecimento é visto como se estivesse tentando fazer diferente para se sobressair, ser superior aos demais. Existe uma rotulação, polaridade entre dois tipos de profissionais trabalhando no futebol. Os mais velhos, e que foram detonados e massacrados após a Copa de 2014, só entenderiam de gestão e não de estratégia. E nós, os mais novos, que buscamos os conhecimentos acadêmicos, somos vistos como os estudiosos, que entendem de estratégia e não falam a língua do boleiro por ter um linguajar mais rebuscado. Talvez meu maior pecado seja gostar de ler. De um modo geral, isso só prejudica nosso futebol. É uma falácia afirmar que o treinador mais antigo, que prestou excelente trabalho ao futebol, deixou de ser competente após 2014. E que um profissional como eu, com quatro anos de formação acadêmica, não se sobrepõe aos 20 de prática como jogador de futebol. Fui buscar na faculdade é justamente a teoria para a minha prática, aplicar uma metodologia e entender o jogo de um ponto de vista mais cientifico, mas sem deixar de falar a língua do boleiro e entender o que acontece pelo lado de dentro do vestiário. São 25 anos ligados ao esporte, jogando em alto nível e de trabalho com grandes profissionais.
Já sentiu que algum jogador não entendia teu vocabulário?
Não, nenhuma vez. Usamos outras ferramentas. O ser humano recebe informação de diversas formas. De modo geral, o jogador aprende de forma cenestésica pelo treinamento. Precisa fazer. Mas alguns têm outros canais de absorção, como a visão ou a audição. Usamos todas as ferramentas que temos para que o jogador entenda a informação. É atribuído um preconceito, em função do atleta não ter inteligência sobre o que o treinador falar. Mas para jogar, o atleta precisa ser muito inteligência. O jogador pode não ter cultura, por ter que parar de estudar cedo para se dedicar aos treinos. Inteligentes, todos os jogadores são. Nunca tive dificuldade para passar informação de forma adequada.
E quanto ao racismo?
É um tema que não podemos fugir. Temos que fazer uma abordagem mais profunda. Temos inúmeros jogadores negros destaques em seus clubes, seleção e fora do Brasil. Hoje, de fato, vemos poucos ex-jogadores negros como treinadores, gestores no futebol brasileiro. Precisamos começar a respeito. As oportunidades são dadas de formas igualitárias, os atletas precisam se capacitar mais para ocupar estes espaços. Minha trajetória como jogador foi finalizada e iniciei um novo processo, entendi que precisa me capacitar para este novo momento. isto me deu condição de entrar em um novo momento, melhor capacitado.
O Cristóvão Borges talvez seja o outro representante. É um cara de formação intelectual semelhante a tua...
É verdade, talvez seja o outro treinador e ex-jogador que tenha atuado em alto nível. No universo das quatro divisões do futebol brasileiro, estamos falando de quase 100 times, é um número muito pequeno. Precisamos compreender este cenário que se desenha. O preconceito pelo conhecimento não é apenas do futebol, é cultural da nossa sociedade. Não é que não devemos valorizar a questão empírica, mas a teoria dá um elemento muito mais completo.
Pensa em trabalhar em 2018 ou só no próximo ano?
Então, como estratégia de carreira e posicionamento politico e gestão familiar, optei por quando interromperem meu trabalho neste momento da temporada, permanecer para o mercado nacional na expectativa por um trabalho para o próximo ano. Para o Exterior, dependendo da oferta, gostaria de estudar.
Já chegou alguma proposta de fora?
Nada. Sondagens para times que estão sem treinador no Brasil já ocorreram. Mas para fora, não apareceu nada que animasse a conversar.