Kayla Harrison é simpática, sorridente e atende a todos com paciência. A judoca americana, bicampeã olímpica em 2012 e 2016, nunca imaginou que um dia passaria pela experiência de ouvir vaias de um ginásio com arquibancadas repletas de torcedores.
No dia 11 de agosto de 2016, a Arena Carioca 2 a vaiou com força assim que foi anunciada para sua luta de estreia na Olimpíada. O motivo: ali estava a principal rival de Mayra Aguiar. Kayla ficou chocada, como contou a GaúchaZH em entrevista por telefone:
— Normalmente não desperto esse tipo de reação, então fiquei surpresa mesmo. Daí veio meu técnico e disse: "Eles estão com medo pela Mayra". Foi legal, acabou me dando uma motivação extra.
Os murmúrios de desaprovação da torcida carioca foram consequência dos enfrentamentos duros e, principalmente, frequentes entre as duas. Foram 17 lutas no total, com nove vitórias de Kayla e oito de Mayra. Decidiram campeonatos mundiais e disputaram uma semifinal olímpica em Londres 2012.
Apesar de ter capítulos iniciais em competições de base, a rivalidade se consolidou mesmo a partir de 2010. Naquele ano, as duas, ainda muito jovens, decidiram o Campeonato Mundial em Tóquio, com vantagem para a americana. O mundo do judô começava a testemunhar uma era de domínio da dupla.
— Apesar de ter perdido, tenho uma ótima lembrança daquele Mundial por ter sido a minha primeira final — recorda-se Mayra.
O confronto se aprofundou por uma circunstância geográfica. Mayra e Kayla, além de se enfrentarem no circuito mundial, eram figuras carimbadas nas decisões de Campeonatos Pan-Americanos. Como essas competições continentais valem muito para o ranking internacional, eram embates importantes.
Nada que se comparasse, porém, ao que fariam dois anos depois, em Londres. Na semifinal olímpica, Kayla venceu uma Mayra que passou por um turbilhão físico e emocional naquele dia. Chegara à Olimpíada com o peso de ser uma das favoritas pela primeira vez (foi aos Jogos em Pequim 2008 na condição de promessa para o futuro). Na primeira luta, lesionou o punho esquerdo. O confronto com Kayla misturou a dor física com a emocional pela derrota. Mas o dia terminou feliz para as duas, já que a americana, medalhista de ouro, ganhou companhia no pódio da brasileira, que recuperou-se do revés e ganhou o bronze na repescagem.
Eu nunca ganhei em Paris e queria muito vencer lá. Ela me ganhou na final com um golpe espetacular
KAYLA HARRISON
Sobre a derrota para Mayra na final do Grand Slam de Paris de 2016
Mesmo que os confrontos importantes se acumulassem, como na semifinal do Mundial de 2014 vencido por Mayra, as duas nunca tiveram grandes desentendimentos. Não são amigas próximas, mas sempre se trataram com respeito.
Ele fica evidente nas palavras de Kayla quando relembra os detalhes de uma das derrotas que mais lamentou na carreira, na final do Grand Slam de Paris, em 2016:
— Eu nunca ganhei em Paris e queria muito vencer lá. Ela me ganhou na final com um golpe espetacular — diz a americana que, em entrevista ao site judoinside.com, disse que reviu essa decisão "umas 40 mil vezes".
Entre frustrações e celebrações, os enfrentamentos impulsionaram o crescimento. Mayra, que sempre teve dificuldades para lutar no chão, teve de trabalhar para melhorar, já que este era o ponto forte de Kayla. A americana, por sua vez, sabia que a gaúcha ganhava na parte técnica. Tinha, de acordo com a própria Kayla, um estilo de judô "mais bonito".
— Eu trabalhei muito para conseguir não perder as lutas que iam para o chão. Hoje, eu consigo vencer lutas no chão. Esse crescimento eu devo muito à Kayla — reconhece Mayra.
Mesmo que tenha se beneficiado da rivalidade para evoluir, Mayra admite algum desconforto com as repetidas reportagens sobre os embates, principalmente na preparação para os Jogos do Rio. Ressalta que tinha (e ainda tem) outras adversárias importantes. Kayla segue a mesma linha ao falar do Campeonato Mundial de 2015, quando já se projetava mais um enfrentamento entre as duas nas fases finais e ambas caíram nas primeiras lutas.
— Lembro de a gente se encontrar depois naquele dia e rir, se perguntando o que tinha acontecido — diverte-se Mayra.
Mesmo com toda expectativa em torno de mais um "clássico" Mayra-Kayla em uma final olímpica, o último encontro entre as duas não se confirmou, já que Mayra parou na semifinal contra a francesa Audrey Tcheumeo no Rio. Kayla se despediu dos tatames com mais um ouro, e a gaúcha repetiu a história de superação de Londres para conquistar o bronze.
Agora, com Kayla longe do judô, Mayra conquistou seu segundo Mundial no ano passado, enquanto a americana dá palestras e se prepara para iniciar a carreira no MMA. Reconhece que a relação pessoal com a gaúcha não é íntima, mas deixa escapar palavras de carinho sobre alguém com quem compartilhou momentos tão importantes:
— Nós nunca fomos melhores amigas. Não é como se uma fizesse trança no cabelo da outra, ou algo assim. Mas se eu for em uma competição de judô hoje, certamente vou querer dar um grande abraço nela.