O ano era 2010, e a poeira dos confrontos suados entre os judocas Flávio Canto e Tiago Camilo, turbinados pelas polêmicas e uma inimizade que limitava o relacionamento a cumprimentos protocolares, já havia baixado. Tiago organizava um site que reuniria informações de sua carreira e pediu que amigos escrevessem depoimentos sobre ele. Convidou, também, o rival que mais marcou sua trajetória. A resposta mostrava que as rusgas do passado estavam definitivamente superadas.
"Poucas pessoas passaram na minha vida e me ensinaram tanto", escreveu Flávio, em uma das frases elogiosas do texto em homenagem a quem foi, em outro momento, um arquinimigo. Tiago se emocionou, foi às lágrimas. Começava uma aproximação que transformou adversários em amigos. As feridas da década anterior entravam em processo de cicatrização.
Feridas que remontavam a 2003, quando se iniciou a seletiva para os Jogos Olímpicos de Atenas, no ano seguinte. Tiago, um prodígio que havia retornado de Sydney, na Olímpiada de 2000, com a medalha de prata aos 18 anos, mudou de categoria. Flávio, principal atleta meio-médio (até 81kg) do país, logo viu que ali estaria seu principal adversário.
As regras de classificação para os Jogos eram o combustível dos embates. Cada país pode levar apenas um representante em cada categoria. Flávio e Tiago lutariam pelo direito de ir à Grécia. A seletiva seria disputada em três capítulos: cada um era uma melhor de três lutas. Quem vencesse duas lutas levava a etapa. Quem ganhasse duas etapas garantia a vaga.
Antes das disputas a relação entre os dois já não era das melhores. Nenhum deles detalha motivos. Tiago até nega que houvesse ódio de parte a parte:
— A gente simplesmente não se falava por causa da disputa que existia.
Se eu fosse disputar na técnica, perderia sempre.
FLÁVIO CANTO
Carioca considerava o adversário superior tecnicamente
Não havia, a despeito dos atritos, qualquer sinal de arrogância ou salto alto. Muito pelo contrário. Os dois tinham plena consciência da dura tarefa pela frente. Para Flávio, Tiago tinha um talento que ele nunca teria. O carioca, hoje apresentador do Esporte Espetacular, estava convencido de que precisava traçar estratégias criativas para vencer:
— Se eu fosse disputar na técnica, perderia sempre.
Para neutralizar o potencial do adversário, o estudava minuciosamente. Assistia a horas e horas de vídeos de suas lutas.
Tiago tinha uma curiosa artimanha para lembrar da força do rival. Recortou uma foto de Flávio de um jornal e a fixou em seu quarto. Era a forma de reforçar a existência do adversário difícil, que preparava-se com afinco. Qualquer momento de fraqueza ou preguiça de treinar era dissipado pela visão do principal concorrente.
Mesmo com o currículo laureado do menino-prodígio, era Flávio quem carregava algum favoritismo quando a seletiva se iniciou, no fim de 2003. Tiago recém havia trocado de categoria e havia uma percepção de que, talvez, sofresse com a adaptação. Ela se dissipou logo na primeira etapa dos confrontos. Flávio ganhou por duas lutas a uma, mas teve de suar muito para abrir a vantagem. Em março de 2004, na segunda etapa da seletiva, Tiago atropelou. Venceu as duas lutas e empatou o placar geral em 1 a 1.
Decepcionado, Flávio retornou ao Rio e, no dia seguinte, foi golpeado pela notícia da morte de seu treinador, o Sensei De Luca, que o ajudava com a parte tática das lutas. Teve de se recobrar em três semanas até o confronto final.
A seletiva foi decidida nos últimos segundos da última luta. Tiago foi punido por falta de combatividade, o que colocou Flávio à frente. A decisão foi duramente contestada. Luiz Francisco Camilo, o Chicão, irmão de Tiago, arremessou uma Bíblia na direção de Flávio. A classificação era do carioca, mas a polêmica não terminou.
Não diria que foi uma grande frustração porque aprendi muito ali. Ganhei forças para ir às três Olimpíadas seguintes
TIAGO CAMILO
Sobre a derrota na seletiva para Atenas 2004
— Cheguei a ouvir que eu ia a Atenas fazer turismo. O Tiago nem tinha culpa, mas eu escutava algo assim de alguém da turma dele e, claro, ficava chateado — lembra Flávio.
Em Atenas, o ambiente pesado persistiu, já que Tiago viajou como reserva da equipe e participava dos treinos. Foi um momento duro, em que deu valor a uma vaga olímpica.
— Não diria que foi uma grande frustração porque aprendi muito ali. Testemunhei lá o que eu estava perdendo. Ganhei forças para ir às três Olimpíadas seguintes — conta Tiago.
Flávio voltou de Atenas com o bronze, a principal conquista da carreira. Quatro anos depois, Tiago foi ao pódio olímpico, também no terceiro degrau. Era a coroação de uma fase esplendorosa de sua carreira, que contou também com o título mundial em campanha avassaladora em 2007.
Aos poucos, a inimizade se dissipou, até que veio o convite de Tiago e o texto de Flávio que mudou de vez a relação. Mas as memórias e aprendizados dos momentos mais quentes do confronto seguem lá. Recentemente, elas vieram à tona quando Flávio assistiu ao filme Rush-No Limite da Emoção, que narra a ferrenha rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt, na Fórmula-1 dos anos 1970. O judoca viu sua história e a de Tiago nas batalhas travadas pelos pilotos. Chorou aos soluços e enviou mensagem ao ex-inimigo, o aconselhando a ver o longa. Tiago ainda não seguiu a dica de Flávio. Talvez por saber que esse filme ele já viu.