– Pela primeira vez em nove anos, me senti inferior ao Real Madrid.
A frase, carregada de sinceridade, é de um dos símbolos do Barcelona vencedor forjado pela cabeça de Guardiola e os pés de Messi, Xavi e Iniesta. O zagueiro Gerard Piqué resumiu assim a final da Supercopa da Espanha, vencida com domínio inconteste pelo time de Zinedine Zidane. A gangorra da mais grandiosa rivalidade de clubes do mundo virou. E a saída de Neymar é só mais um capítulo deste processo.
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Sob vários aspectos, o Real virou o Barça e o Barça virou o Real nos últimos anos. No Santiago Bernabeu, a política de contratações milionárias e, por vezes, inúteis, foi substituída por uma inteligente prospecção de mercado que permitiu a chegada de nomes menos badalados, como Isco e Asensio, hoje peças decisivas da engrenagem. A dependência dos atacantes, manifestada no trio BBC (Bale, Benzema e Cristiano) em outras temporadas, saiu de cena em nome do controle do jogo pelo meio-campo. Cristiano Ronaldo tornou-se ainda mais letal ao ser alimentado por jogadores criativos e talentosos como Kroos, Modric e Isco. O toque de bola encantador que antes passava por Xavi e Iniesta hoje se veste de branco.
Enquanto isso, na Catalunha, o Barcelona se distanciou do que sempre foi seu DNA. Com Guardiola, o meio-campo definia tudo – até Messi recuava para se juntar ao esforço de criação. Mas a base foi preterida em nome de contratações milionárias e a equipe construiu seu próprio trio de ataque, este bem mais letal, com Messi, Suárez e Neymar. Viveu do brilho dos três e ganhou a Liga dos Campeões de 2015 assim, mas a queda começou quando os adversários aprenderam a brecar o temido MSN. Sem o N, a falta do jogo coletivo se escancarou.
– Na temporada passada já havia um cenário bem claro. O esgotamento do Barcelona e de suas peças: do Piqué, Mascherano, Iniesta, entre outros. Isso sem contar que o Puyol parou e não teve reposição à altura, o Xavi saiu, o Daniel Alves. Nos clássicos da última temporada o Real foi melhor sempre. Mesmo no jogo do Bernabeu, em que o Barça venceu, foi o Real que teve o controle do jogo – avalia Vitor Sergio Rodrigues, comentarista dos canais Esporte Interativo.
Começa com Zidane a transformação do Real em algo ao menos parecido com o Barça incrível dos tempos de Pep. O título europeu de 2014, sob a batuta de Carlo Ancelotti, veio com um time que adorava o contra-ataque. Zizou fez o futebol de sua principal estrela crescer, deu mais posse de bola à equipe e a transformou em versátil: o Real ataca e se deixa atacar de acordo com as circunstâncias da partida.
– O Zidane não é um grande estrategista, mas os jogadores o respeitam muito. Hoje, o Real tem um elenco mais equilibrado, enquanto antes havia aquela sede por buscar estrelas no mercado. Houve também uma mudança de ideias. Com Mourinho, por exemplo, era uma equipe muito defensiva – comenta Ben Hayward, correspondente na Espanha do portal Goal.com.
A gestão de Zidane sobre Cristiano é outro ponto frequentemente elogiado do trabalho.
– Foi o único técnico que o convenceu a não jogar algumas partidas para se poupar. Ele sempre queria jogar todas. Nas finais da Liga dos Campeões de 2014 e 2016, o Cristiano pouco fez. Era um jogador mais cansado. Nessa última temporada, foi decisivo em toda a reta final da Liga dos Campeões – complementa Hayward.
O ciclo de transformação da rivalidade ganhou atenção a partir da saída de Neymar, mas outra movimentação de mercado menos badalada é mais simbólica da transferência de poder do Barça para o Real. Os rivais disputaram com afinco a contratação do meia Dani Ceballos, 21 anos, destaque do Real Betis. Os merengues levaram, garantindo o futuro do meio-campo técnico e criativo que hoje controla os jogos pela Europa. Já o Barça, que parecia ter a reposição pronta quando Xavi e Iniesta saíssem de cena, liberou Tiago e Fabregas. Nem La Masia, a fábrica de craques que sustentou os anos dourados de Pep, tem sido solução. Ceballos poderia ser uma esperança, mas o Barça teve de se contentar com Paulinho, um jogador com características que pouco se encaixam no estilo tradicional do clube.
– É uma contratação estranha – resume Hayward.
– Em algum momento, o Barcelona passou a resolver jogos sem passar pelo meio-campo. No auge do MSN, ganhou títulos. Houve um declínio físico de todo mundo e aprenderam a marcar esse trio na frente. Isso fez com que o Barcelona caísse bastante de produção – resume Rodrigues.
A temporada se iniciou escancarando a realidade de um Barça à procura de seu meio-campo, e tentando marcar, sem sucesso, os meio-campistas do Real. Os números mostram: na quarta-feira, pela primeira vez desde maio de 2008, os merengues tiveram mais posse de bola do que os catalães em um clássico. A gangorra virou, e parece ter chegado a hora de o time da capital colocar o arquirrival na roda.
* ZH Esportes