Adenor Bachi, o Tite, aprendeu, ao longo dos 27 anos da carreira de treinador, como fazer seu interlocutor entender exatamente o que ele quer dizer. Com longas pausas, confere importância à frase que rompe o silêncio. Não tem pudor de gritar a plenos pulmões quando se empolga com alguma ideia. E gesticula, aponta, mexe os braços para que a mensagem não seja apreendida apenas por meio das palavras.
Talvez esteja aí um dos segredos que faz do técnico da Seleção Brasileira, aos 56 anos, uma referência não apenas do futebol, mas também em como exercer liderança sobre um grupo.
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Em pouco mais de uma hora de conversa com ZH, Tite lamentou as demissões em série nos clubes brasileiros – em pergunta que mereceu um de seus momentos silenciosos e reflexivos antes de dar uma resposta. Revelou que "não sentia as pernas" devido ao nervosismo durante sua estreia na Seleção e afirmou que tende a convocar mais jogadores de clubes brasileiros para os próximos jogos das Eliminatórias (contra Equador e Colômbia).
Ídolo nacional, apontado como principal protagonista do processo de recuperação da equipe brasileira após o 7 a 1 contra a Alemanha em 2014, Tite só não aceita a responsabilidade de ganhar a próxima Copa, no ano que vem, na Rússia, para dar uma alegria à população em um momento de tanta instabilidade do Brasil.
– Já temos uma capacidade de entendimento maior de saber que o futebol não pode suprir os problemas sociais que temos – resume.
A entrevista foi concedida na última segunda-feira, quando Tite esteve em Porto Alegre para uma palestra.
O Brasileirão está definido?
Ainda não. Doze rodadas é muito pouco em um total de 38 (a entrevista foi concedida na segunda-feira, antes da 13ª rodada).
A janela de transferências para os clubes europeus vai influenciar muito?
Posso falar de cadeira (risos). Quando nós fizemos o time do Corinthians que foi campeão brasileiro em 2015, fui para as férias em uma felicidade de saber que o time tinha aquilo que entendo de futebol: dá para aliar beleza com efetividade. Competição com jogar bonito. Dá para fazer as duas. Aquele time fazia isso. E aí perdi vários jogadores na janela.
Aquele time era melhor que o de 2012, que foi campeão mundial?
Era mais equilibrado, jogava mais bonito.
Fábio Carille, técnico do Corinthians, é seu discípulo e agora lidera o Brasileirão.
Eu diria que ele, o (Geraldo) Delamore, o Sylvinho e o Cleber (Xavier, hoje auxiliar da Seleção). Praticamente os cinco anos de Corinthians a gente trabalhou juntos. Uma das coisas que me deixam contente é que, quando vou para os clubes, procuro potencializar quem trabalha lá. O Cleber está há 16 anos comigo, só que no banco revezava o Fábio Carille, o Sylvinho, cada um ficava um jogo. Eu preciso preparar o profissional. Depois é o voo dele.
Como vê as demissões em série de técnicos?
Quando li sobre as demissões, imaginei que eu tinha de me preparar para responder a essa pergunta. (Faz uma longa pausa) Não sei. Talvez não possa dizer tudo que eu penso. Vou tentar resumir: há um grande despreparo de quem comanda, dos dirigentes. Em toda a minha trajetória nos clubes, sempre tive uma pessoa que, em momentos importantes, me bancou. Que disse que conhecia meu trabalho e confiava para continuar. Desde o Veranópolis, o Grêmio, o Inter, o Caxias. Quando não tem, por parte do dirigente, essa capacidade de absorver a pressão da mídia, isso é um despreparo. Vocês emitem opiniões, mas a atribuição de pensar a médio e longo prazo é dos dirigentes. O que está melhorando agora é a contratação de executivos de futebol, que permitem uma ligação e uma avaliação melhores do tipo de profissional com quem vais trabalhar. Sem dar a eles o poder, mas sendo um profissional que diz qual o perfil do técnico, que tipo de futebol, qual o perfil do preparador físico. Essas demissões me machucam, me deixam chateado.
Qual o impacto da falta de continuidade dos trabalhos na qualidade do futebol dos clubes?
O técnico que está iniciando sente a necessidade de ter resultados, para ter uma poupança. Assim, em alguma situação importante, ele é preservado. O José Alberto Guerreiro (ex-presidente do Grêmio), quando me contratou... Vou fazer uma inconfidência: um dia, conversando com ele, revelei que eu tinha ficado brabo quando o Grêmio não me contratou ao sair o Antônio Lopes (em 2000). Eu estava no Caxias, a gente tinha sido campeão gaúcho. "Por que não me convidou?" Me deu um nó na cabeça. O trabalho me credenciava a dar esse salto. A resposta dele foi sábia: "Tite, sabe por que o Grêmio te contratou agora, no início do ano (em 2001)? Porque o Campeonato Brasileiro não permite tempo, é cruel. Tem de ter resultados imediatos". No Gauchão, tu podes até errar, mas a qualidade técnica da equipe suplanta o adversário e tu tens condições de te afirmar. Fui para casa e pensei: se eu fosse dirigente, pensaria igual. Se traz no meio do Brasileiro, fica à mercê de ser mais conservador, fechado, reativo, qualquer que seja o adjetivo.
Você vê uma evolução no Brasil de trabalhos que são de longo prazo?
Tem de ter a coragem e a convicção. O Roger (Machado) teve no Grêmio e continua com o Renato (Portaluppi). No futebol brasileiro, há modelos mais da aproximação, das tabelas, do jogo combinado, da escola do seu Ênio (Andrade, ex-técnico campeão brasileiro por Inter e Grêmio). Não estou dizendo que uma escola é maior do que a outra, mas são modelos em que a gente acredita e que carregam uma metodologia. Escolhemos jogadores para fazer isso. O Grêmio tem, o Inter está retomando, buscando. Está sem identidade e buscando nesse processo. Quando tem tempo para trabalhar, é possível consolidar. O Roger tem uma forma de trabalhar, modificando em relação ao que era o Atlético. Já é uma proposta diferente.
Você consegue acompanhar todos os grandes clubes do Brasil?
Nisso eu sou perfeccionista. Acompanhar os grandes clubes e os atletas convocados. Esses 50 e poucos têm de ser acompanhados. Não vejo todos os jogos, mas aí entra a equipe de trabalho. Tenho o Sylvinho na Europa, que está terminando o curso da Uefa e deve ir trabalhar com o (técnico italiano) Roberto Mancini no Zenit. Temos gente acompanhando as pré-temporadas das equipes europeias. Quero ver em que estágio estão os jogadores de lá. Se estiverem em estágio abaixo, vou convocar quem está aqui em melhor condição.
Para as próximas partidas das Eliminatórias existe a possibilidade da convocação de mais jogadores que atuam no Brasil?
A possibilidade, em termos percentuais, de jogadores brasileiros serem convocados em comparação com a última convocação é maior.
Há jogadores que sentem mais do que outros o peso de atuar pela Seleção Brasileira?
Pego as perguntas de vocês e elas dão um insight para largar na reunião da comissão técnica. Há alguns jogadores que inflam com a camisa da Seleção. Em outros, a camisa pesa. É o período de maturação que, às vezes, os atletas têm. E daqui a um tempo vou convocar de forma definitiva e daqui a pouco estará no primeiro jogo do Mundial. E aí? E se o cara não estiver pronto para aguentar esse peso?
Há um dilema: o Mundial se aproxima e você tem de definir o grupo. E não são 11; são 23. Não é Neymar e mais 10...
Por isso que tenho de apressar o processo. O ideal seria que o técnico que fosse escolhido (logo depois da Copa de 2014) terminasse esta etapa (Tite assumiu em junho de 2016). Porque ele teria mais elementos, subsídios de avaliação. Eu queria ter disputado a Copa das Confederações. Quero ver como o cara reage. Quero perder, como perdemos para a Argentina, e olhar para o cara e ver a reação dele. Eu preciso disso. E a gente se acostuma com essas pressões regionais, que são inevitáveis. Tenho que compreender isso. O torcedor do Rio Grande do Sul vai querer jogador daqui. O Nordeste vai querer de lá. O do Rio vai querer o do Rio. Tem de lidar com isso tudo com naturalidade.
Então, com isso, é possível prever a convocação de jogadores como os gremistas Luan e Geromel?
Não, sem prever nada (risos). Mas abre essa possibilidade, sim. Que Luan já poderia ter sido convocado, sim. E eu gostaria que as convocações fossem não num intervalo de 15 dias, mas de sete dias. Porque eu perco quatro jogos. Quer ver? Eu vim assistir a Grêmio e Botafogo aqui. O Grêmio vinha num momento inconstante, tinha perdido o Campeonato Gaúcho. E a própria avaliação do Luan era de instabilidade. O que aconteceu? Deu três jogos, ele arrebentou e eu não o tinha convocado...
Há casos de clubes que pedem para que seus jogadores não sejam convocados porque têm jogos decisivos pela frente?
Não. Se existe, não chega na minha alçada. Agora, se tenho duas ou três convocações e os atletas forem do mesmo nível, e eu tenho dois de um time e um de outro, aí eu equilibro. Mas sempre preservando a qualidade técnica e a necessidade da Seleção. Sabe por quê? Porque me coloco no lugar do atleta. Eu queria estar na Seleção. É a minha vida. O clube perde toda a credibilidade com o atleta se fizer isso.
Você conseguiu fazer com que Paulinho e Renato Augusto, dois jogadores que estão na China, um centro não muito competitivo, se firmassem na Seleção. Como mantê-los em alto nível?
Os atletas que foram para a China hoje contam com muitos profissionais de qualidade que também foram para lá. Falo de técnicos, preparadores físicos. Então, está melhorando bastante. Digo a eles: se vocês pensam em Seleção e quiserem mudar de clube, busquem entidades que já estejam consolidadas, com boas condições técnicas. Se não for assim, vai atrapalhar o desempenho. Se for uma equipe grande, com condição financeira, mas que não tenha boa estrutura, não vai jogar. Se for para uma equipe sem comissão técnica qualificada, vai regredir. A China cresceu muito, e alguns profissionais levam consigo nutricionistas e preparadores físicos particulares. Eu coloquei para o Fábio (Mahseredjian, preparador físico) e disse que ele poderia passar para todo mundo: só jogará se estiver na condição física ideal e dentro dos parâmetros que você estabeleceu. Qual o percentual de gordura? Está treinando? Não está? É pré-requisito de atleta de alto nível.
Você sente uma evolução dos jogadores em termos de compreensão das ideias táticas?
Você falou uma coisa interessante e eu comecei a viajar aqui. Cara, a escola que tive no Grêmio, com Roger, Zinho, Tinga, Rodrigo Fabri... Atletas mais esclarecidos, de uma capacidade de compreensão... Que escola! Tive outros atletas com esse perfil, como o Gil Baiano no Caxias, com grande capacidade de percepção. Eu queria ver se o (meia do Zenit) Giuliano poderia trabalhar pelo lado, no 4-1-4-1. Fiz isso contra a Austrália. Deu uns 10 minutos e vi que ele não esperava a bola chegar, o timing dele estava errado, buscava a bola cedo demais e trazia a marcação, não conseguíamos nem sair de trás nem acioná-lo. Quando ele chegou perto da lateral, comentei isso. Ele respondeu: “Tu estás dizendo que eu tenho de esperar mais antes de aparecer para jogar, não é?”. Eu disse: “Exato”. Tem cara que é fascinante na compreensão. O Fernandinho, o Casemiro e o Thiago Silva são assim.
Para quem está de fora, você tem um peso extraordinário sobre as costas, que é o de fazer o Brasil voltar a ser campeão.
Eu tenho uma responsabilidade, uma obrigação, um peso, qualquer que seja o adjetivo, de fazer a equipe jogar bem. Isso eu tenho.
Não tem o peso de ser campeão?
Não posso. Isso foge da minha alçada. Taticamente, a equipe que mais precisou de um técnico para ser campeã foi a de 1994. Foi o maior trabalho que um técnico fez para ser campeão. Ele (Carlos Alberto Parreira) não contava com grandes e extraordinários talentos e tinha uma solidez extraordinária. O Abel (Braga) fez o Inter campeão mundial assim. O que ele fez para ganhar do Barcelona? Resumindo: teve dupla sobra o tempo todo no jogo. Com um time tecnicamente inferior, equilibrou as ações e foi efetivo. O futebol te permite isso.
Como você conseguiu mudar completamente a Seleção sem tempo para treinamento?
(Risos) Eu fui (convocado pela CBF) à noite para ouvir a proposta. Foi a primeira vez em que voei de helicóptero. Pensei comigo: pô, cara, é o meu sonho, é minha oportunidade de ser o técnico da Seleção Brasileira. Eu criei essa possibilidade. Eticamente, atendia aos meus preceitos, não tinha outro técnico no cargo. Não sabia em que hora esse sonho podia acontecer de novo. Não sou melhor do que ninguém, mas meu momento profissional me credenciava. A responsabilidade é muito grande. Entendo que se tem de pegar no início e desenvolver o trabalho até o final. Quem assegura que o trabalho anterior não teria revertido e agora estaria numa situação melhor se tivesse continuado? Ninguém. Eu gostaria de ter pego em 2014, estaria melhor preparado, com mais tempo junto aos atletas. O processo está errado. Não é o ideal fazer assim. Fui para casa pensando: vamos jogar contra o Equador lá na altitude. Depois, contra a Colômbia, a seleção que, com o Chile, mais cresceu na América do Sul. No primeiro tempo (contra o Equador), eu não sentia direito as minhas pernas de tão nervoso (risos). Eu com 30 anos disso. Eu pensava: pô, cara, respira, concentra.
Seu contrato com a CBF vai até a Copa de 2018?
Sim.
O técnico da Alemanha renovou e vai seguir depois da Copa. A CBF já tem alguma proposta para estender o seu contrato?
Não. E entendo que isso não deva ser tratado agora. Vivemos uma realidade diferente da europeia. Deixa terminar o trabalho e aí as pessoas terão condições de ver. Que tipo de trabalho desenvolvi, que ideias tive, que tipo de pessoas eu trouxe, porque tenho uma comissão técnica em que cinco integrantes acompanham tudo das 10h às 19h, checam números, fazem interpretações.
No Grêmio, Roger Machado foi criticado por trazer ao dia a dia expressões tiradas da teoria, dos livros. Você passou por isso logo que foi para São Paulo. Entende que, apesar disso, começa a se abrir o espaço para treinadores que não têm vergonha de debater novas ideias e utilizar um vocabulário mais elaborado?
Há duas tendências. Uma é o tempo vivido no futebol. Estou falando de técnicos e amplio para a área jornalística. Outra é a do estudioso. Eu procuro, até por ter sido jogador e ter me formado em Educação Física, ter o meio termo. O cheiro do vestiário e a experiência são insubstituíveis. São situações ricas. Porém, paralelamente a isso, dá para ler um livro, dizer que Guardiola propõe jogo, que Mourinho é reativo. Dá para usar termos, como posse de bola, triangulação, jogo apoiado, e usar adjetivos, sinônimos. Não tem conflito entre uma e outra, dá para ter as duas coisas. Isso é legal. Sabe por quê? Porque hoje as pessoas não querem só torcer para futebol, elas querem entender futebol. Tem de ter coragem para isso. Talvez por isso falassem em “titebilidade”. Eu sou um colono que gosta de ler.
A Copa das Confederações na Rússia mostrou algo novo em relação à última Copa do Mundo?
Sim: equipes jogando com três defensores e fazendo linha de cinco para marcar. A Alemanha marcava em linha de cinco, abria uma linha de quatro na frente e deixava um atacante na frente. Aí formava três linhas. Contra o México, deu muita posse de bola para o adversário depois que fez 2 a 0, ficando acuada. Não sei se essa será uma proposta, porque é muito reativa. Os volantes rivais ficam muito livres para jogar.
O brasileiro voltou a sentir orgulho da Seleção. Isso coloca mais pressão em vocês devido ao momento ruim que o país vive nas mais variadas instituições?Acho que já temos uma capacidade de entendimento muito maior de saber que o futebol não pode suprir problemas sociais. Esses problemas estão aí e são muito graves. Eu acompanho e torço para que a educação e a punição estejam presentes. E aqui fala não só o técnico, mas também o pai. A Seleção não vai suprir isso. Ela tem um rumo próprio, um DNA próprio. Não sei se vai ganhar. Mas temos a responsabilidade de jogar bem. Eu tenho essa responsabilidade, esse peso, esse fardo, que é proporcionalmente igual ao prazer, à satisfação, de fazer a equipe jogar bem. Não sei se vai ganhar. E eu coloco isso para os atletas: jogar bem, competir, isso é nossa atribuição.
Quais são os principais adversários do Brasil pensando na Copa do ano que vem?
Não tenho todos devidamente avaliados. Mas tenho hoje uma ideia muito clara de que Alemanha e França, duas equipes que me impressionaram já em 2014, são grandes adversários. A Itália é sempre forte. Sabe jogar a competição que se define em um jogo só. É muito forte mentalmente. A Espanha mantém a sua estrutura. No meu tempo, não vi na Bélgica uma geração com tantos jogadores de qualidade. Hazard, Witsel, De Bruyne... Nainggolan joga muito. Voltou agora o zagueiro Kompany. Tem Courtois.
Você gostaria de já ter enfrentado um time europeu no comando da Seleção?
Eu não tinha recebido essa pergunta (risos). Mas vou te dizer. Quando marcaram amistoso contra a Argentina, eu falei: "Pô, mas já enfrentamos eles". Só rivalizamos com quem admiramos. E a Argentina é de alto nível. Vejo Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile em um padrão europeu. A seleção chilena é muito forte mentalmente. Se me perguntarem se jogar contra o Uruguai é o mesmo que enfrentar a Itália, respondo sim. Se me perguntarem se coloco Alemanha e Argentina no mesmo patamar, também respondo sim.
* ZH Esportes