Um menino sírio morreu afogado porque seu pai, desesperado com a guerra, tentou fugir de barco para a ilha grega de Kos, espécie de porta de entrada da Europa para os refugiados. Aylan, 3 anos, amanheceu sem vida na areia da praia. A foto das perninhas dele balançando nos braços do agente da guarda costeira, estampada em todos os jornais do mundo, é a síntese do fracasso da civilização.
Um adolescente foi assassinado a garrafadas por entrar numa festa em Charqueadas. Seu crime foi se solidarizar com um amigo de uma cidade vizinha, que foi rejeitado por não ser local. Em 2013, Evandro Godoy Kunrath ficou cego do olho direito, ferido por um tiro de bala de borracha da Brigada Militar. Não estava metido em briga alguma. Entrava na Arena do Grêmio.
O que une estes três episódios aparentemente tão diferentes entre si, além da estupidez e da barbárie? As três vítimas eram inocentes.
Pensei nisso acerca da polêmica da semana. Liberar a bebida alcoólica nos estádios brasileiros é como permitir porte de arma. Andar armado não significa que alguém vá sair por aí dando tiros a esmo, embora isso volta e meia aconteça em alguma escola americana. Mas o fato é que, de arma ao alcance da mão, existe a chance da bala perdida. E a bala perdida, não raro, pune inocentes.
Minha experiência em anos de reportagens sobre violência no futebol sugere que, onde há briga e confusão, tem álcool e droga no meio. O álcool distorce sentidos. Manda os filtros dos instintos às favas. É um coquetel molotov, combinado a um ambiente que, não raro, se alimenta da histeria. Os estilhaços desta fórmula podem atingir um inocente.
Na Noruega, nos EUA e na Alemanha, obviamente, é diferente.
Lá existe repressão e punição. As pessoas têm essa lógica presente no dia a dia desde que nascem. Crescem vendo o infrator perder. Os limites são culturais e estão na cabeça até do bêbado valentão que vai ao estádio.
Mas não estamos na Noruega, nos EUA e na Alemanha. Estamos no Brasil, com um longo caminho a percorrer.
Somos uma democracia jovem, quase adolescente, que não percebe a importância do cumprimento pétreo das regras de convívio definidas em lei. São essas regras que garantem a liberdade de todos, impedindo a imposição autoritária da vontade individual sobre a maioria.
Tomara que, no futuro, seja possível sorver um bom vinho ou refrescar a goela com uma caneca de cerveja em nossos estádios. Eu pedirei cerveja. Prefiro. Mas, até lá, as bebidas têm de sumir inclusive das cercanias, e no maior raio possível de distância, para acabar com a fraude atual, que permite se entortar no bar da esquina e passar pelas catracas trançando as pernas logo depois. A lei seca resolverá o drama social da violência? Não, é claro. Até um acéfalo sabe disso, e para tanto as campanhas educativas são preciosas. Mas é óbvio que a sobriedade reduz as ocorrências policiais e incentiva mulheres e crianças a irem aos jogos.
Deixei para o fim o mais estapafúrdio dos argumentos em defesa da volta do álcool aos estádios, que é o do convívio tranquilo durante a Copa. Como se sabe, a bebida foi liberada para atender às pressões da Fifa, essa entidade tão ética e de sinceros propósitos. Só que, na Copa, o público não era apenas coxinha. Era muito coxinha. Além do mais, nela as rivalidades têm outro tom, se é que podemos chamá-las de rivalidades. Na Copa ainda se faz ola. Nada a ver com o ódio Gre-Nal, Fla-Flu, Corinthians e Palmeiras ou Galo e Cruzeiro.
Todas as pesquisas mostram que o álcool é amigo da violência, mas nem precisaríamos delas. Quem não sabe que confusões e brigas são regadas a trago? Temo que este súbito interesse pela volta da bebedeira nos estádios seja comercial, o olhinho brilhando pela grana do patrocínio das grandes fábricas.
Aí envolve poder. É um perigo. Ainda assim, sugiro aos que pretendem liberar o consumo de bebidas alcoólicas que pensem se vale a pena colocar em risco a vida de inocentes.
Inocentes como o menino sírio que nada tinha a ver com a guerra dos adultos, o adolescente de Charqueadas que só queria se divertir com os amigos ou o torcedor na Arena a caminho do estádio.
*ZHESPORTES