Antonio Souza estava em um aniversário quando recebeu uma ligação da filha Sofia: "Pai, liga a TV, liga a TV!". Patricia Spier estava em Santa Catarina, em uma festa de família. A atenção era dividida com um jogo de cartas. Até o intervalo. Era pouco antes das 17h de 21 de janeiro. Àquela altura, Anthoni aparecia na tela. Estava abaixo da placa de substituição. Entraria no lugar do então estreante Ivan. Havia, é claro, tristeza pela lesão do outro goleiro (que acabou sendo bem grave). Mas para a família Spier Souza, era a primeira realização de uma vida dedicada ao futebol e à estrada. Depois de quase uma década e meia, o guri de Três Coroas que começara no Inter aos nove anos, enfim jogaria no time profissional. Dois meses depois, é titular do time na semifinal do Gauchão.
Nem ele esperava. Reserva naquele primeiro jogo da temporada, estava no banco quando viu que Ivan havia sentido o joelho, ainda na etapa inicial. No intervalo, foi informado de que iria entrar.
— Na hora, ali na beira do campo, é tudo muito rápido, não dá tempo de pensar, só quer estar pronto. Mesmo nessa loucura, vem tudo à tona, o medo, a felicidade, a preocupação e principalmente a vontade de fazer tudo perfeito. Claro, depois que a poeira baixa, queria que o tempo parasse para curtir e eternizar aquele momento. São anos e anos dedicados a esse sonho — tenta explicar Anthoni.
Muitos anos. Quase todos de seus 21. E muitos quilômetros. Mil por semana, mais ou menos, entre os 10 e os 14 anos. Todos os dias, de segunda a sexta, Anthoni entrava no carro da mãe e descia a Serra para treinar no Beira-Rio ou em Alvorada. E depois voltava para Três Coroas. Por vezes, rolava uma carona coletiva com outros guris da região.
— Passávamos mais tempo no caminho do que no treino — recorda a comerciante Patricia, 53 anos.
Era goleiro até em brincadeira na rua
A história de Anthoni se confunde com a de tantos outros. Nascido em Canela por uma questão médica, criou-se em Três Coroas. Jogava na unidade local da Escola Rubra, do Inter, destacou-se em um jogo e viajou para Porto Alegre para fazer um teste. Era outubro de 2010. No verão, assinou um vínculo para confirmar que faria parte da base colorada. Começava, ali, o sacrifício de parte da infância e da adolescência.
Anthoni deixou de lado as brincadeiras e as descobertas dessa fase da vida para experimentar o regime profissional de clube grande. Ou seja: nada de festas, nada de noites em claro e trabalho desde cedo. Treino, muito treino. E isso não era problema. Porque Anthoni é goleiro. Muito goleiro. Quem joga bola sabe que todo goleiro, assim que pode, pede vaga na linha, de preferência no ataque. Anthoni, não. Era goleiro até em brincadeira na rua. Talvez reflexo do pai, que defendia no futsal.
Mas por mais que se fuja de infância e adolescência, essas fases da vida não escapam. E Anthoni cresceu. De certa forma, rápido demais.
— Entre os 13 e 14 anos, ele deu um estirão. Foram quase 15cm — conta Antonio.
Esse crescimento transformou o goleiro fortinho em um magrão alto. E com problemas no joelho, que não acompanharam essa mudança súbita. Então Anthoni conheceu o lado dolorido do esporte de alto rendimento.
As dores limitaram alguns movimentos e enquanto o corpo não se acostumou, ele chegou até mesmo a ser reserva. O período coincidiu com a mudança para o alojamento, no CT Morada dos Quero-Queros, em Alvorada, aos 14 anos. Os pais viam que os finais das folgas, normalmente no domingo à noite, eram os momentos mais tristes.
Que Anthoni superou com o trabalho. Seguiu treinando, estudando. Recuperou espaço. E voltou a ser titular.
Aparição no "Vem, Alice"
Fora de campo, a vida não tem tantas histórias interessantes. Visita os pais quando possível, sai com a namorada, bate papo com a irmã. De tão discreto, o fato mais inusitado que passou foi aparecer no quadro "Vem, Alice", do Globo Esporte, que homenageou Jair Scherer, o Stets, personagem de Três Coroas responsável pelo projeto Sandense, que atende mais de 200 crianças da região, onde o goleiro deu seus primeiros pulos.
— Ele é um guri ótimo. Uma pessoa totalmente diferenciada. Na última folga veio aqui me visitar. Em campo, tem uma grande personalidade também — elogia Stets.
Essa personalidade foi recompensada com a faixa de capitão no braço esquerdo. Foi líder em todas as categorias, até o sub-20.
A chegada de Rochet
No ano passado, subiu definitivamente para o profissional. Era o quarto goleiro, atrás de Keiller, John e Emerson Júnior. Quando chegou Rochet, caiu mais uma posição. Chegou a duvidar que teria oportunidade. Quem o conhece mais de perto afirmaria que ficou triste no início.
Mas percebeu que estava errado quando começou a conviver com Rochet. O uruguaio estreitou tanto as relações com o jovem que é o próprio Antonio quem diz:
— Rochet é o paizão do Anthoni no futebol.
A orientação a Anthoni era para seguir treinando, estar pronto porque nunca se sabe quando a oportunidade vai aparecer. Goleiro só joga um. O que não deixa de ser uma ironia com a classe mais unida dos boleiros. A lesão grave de Ivan foi um baque para os companheiros de meta. E significou a tal oportunidade. O Inter optou por esperar um pouco, ver a recuperação de Rochet e a reação de Anthoni antes de ir ao mercado. O uruguaio está em vias de voltar. O jovem evoluiu. Do começo ainda inseguro à atuação de melhor em campo contra o Juventude, o salto é notável.
— Nem diria que está mais confiante. O que ele tem é ritmo de jogo. Isso é fundamental. Anthoni não jogava desde 2022. Só treinava. Com o tempo, tem conseguido mostrar sua qualidade — analisa Antonio.
O reconhecimento público de Coudet ajudou. O treinador, após o jogo com o Juventude, afirmou:
— Anthoni vem fazendo um trabalho muito bom. É bom para o grupo e para o clube. Sempre falei que estou tranquilo com os goleiros que temos. A evolução dele me deixa contente.
Ajudou para esse momento a ajuda profissional especializada. Anthoni, há quatro anos, conta com um psicólogo para auxiliar no crescimento da carreira. Uma situação importante para a função mais solitária do futebol.
Na segunda-feira (25), ele terá a chance de voltar a uma final de Gauchão, algo tão frequente em sua curta carreira. Dos nove aos 20 anos, perdeu as contas de quantas vezes viu o troféu na beira do campo. Do grupo colorado, é quem mais tem títulos estaduais no RS, seis (óbvio, contando a base). Para chegar à final, porém, terá de ajudar o time a vencer o Juventude, no Beira-Rio. Não levar gols é sempre um bom começo, e o goleiro é o personagem principal da defesa menos vazada do campeonato. O título é um sonho a mais para um tão inesperado começo da carreira. Patrícia dá o recado final:
— Anthoni começou a jogar bola aos quatro anos. Quando levava ao CT, naquelas viagens de quatro horas todos os dias, sabia que esse dia chegaria. Ele é muito dedicado, focado, uma coisa especial. Quando chegávamos em casa, depois dos treinos, em vez de ir tomar banho, ele ia para o pátio chutar bola na parede. Ser goleiro é a vida dele. Larguei faculdade, trabalho, tudo. Ouvi muitos xingamentos. Vê-lo em campo faz tudo valer a pena.
Três perguntas para Anthoni
Como tem sido o dia a dia de goleiro titular do Inter?
Dentro de campo, a cada dia que passa me sinto melhor. A cada jogo, a cada sequência, me sinto mais apto para entregar meu máximo e ajudar a equipe. É verdade que com tudo isso vêm muitas responsabilidades e muita pressão, afinal vestir uma camisa pesada como a do Inter, substituir um goleiro de seleção, e lidar com expectativa gerada por grande parte da torcida, não é fácil. Mas, como comentei, dedico minha vida inteira a esse sonho, a cada fase e a cada momento que eu vivi para chegar até aqui me fez amadurecer e me preparou para viver esse momento.
Busco meu melhor sempre, me cobro bastante, e tenho muito claro onde quero chegar, onde quero levar o clube. Sei que tenho uma longa jornada pela frente. Também sei das dificuldades que podem vir, então é pôr os pés no chão, abaixar a cabeça, seguir me preparando mentalmente e trabalhar, buscando evoluir a cada dia. Também vale destacar que há quatro anos faço um trabalho com um psicólogo, o que fez e faz toda a diferença, porque mudou minha vida.
Como é a convivência com Rochet e com os demais goleiros?
Quanto ao Rochet, é uma relação de amigo e colega de trabalho, conversamos coisas do dia a dia, e debatemos sobre situações dos jogos, assim como ele me passa muito aprendizado. E em relação aos outro goleiros (Diego, Kauan e Henrique) é uma relação de colegas, eles estão fazendo a transição base-profissional deles, assim como eu fiz a minha, dentro do possível e do pouco de experiência que eu posso passar, eu tenho ajudado, afinal, estamos todos juntos, por um só objetivo.
O que prevê para a temporada do Inter?
Vejo uma temporada longa, e de muitos desafios. Serão jogos difíceis e muito competitivos. É verdade que temos um grupo muito qualificado, e acredito que jogo a jogo, a gente pode evoluir ainda mais.