Há exatos 50 anos, o domingo dos gaúchos foi abalado por uma notícia impactante. O lateral-esquerdo Everaldo Marques da Silva, campeão do mundo com a Seleção Brasileira, havia morrido em um acidente de trânsito na BR-290. A tragédia vitimou ainda a esposa dele, uma irmã e a filha mais nova. A filha mais velha do jogador que virou estrela na bandeira do Grêmio, Denise Helena Silva da Silva, sobreviveu. Hoje moradora do bairro Restinga Nova, em Porto Alegre, ela recebeu a reportagem de Zero Hora na última quinta-feira (24).
Mesmo tendo apenas 6 anos em 27 de outubro de 1974, ela tem recordações do dia em que os Silva rumaram para Cachoeira do Sul para participar de um jogo festivo, que também servia de ato da campanha política de Everaldo, então candidato a deputado estadual pela Arena (um dos partidos da época). Do domingo trágico, lembra das arquibancadas brancas do estádio onde o pai atuou pela última vez, defendendo os veteranos do Grêmio. E da parada em um posto de gasolina no retorno, quando o lateral conversou com o amigo Loivo, que também havia ido a Cachoeira do Sul e estava em outro carro.
— No posto, lembro até das conversas deles, de que iriam parar em outro lugar. Depois, falando com o Ancheta (também ex-jogador do Grêmio), soube que iriam para a festa de aniversário da esposa dele. Dormi no carro atrás, talvez tenha me salvado por isso. Estava no colo dos meus tios, caí nos pés deles. Acordei no hospital, contaram que meu pai estava viajando — recorda Denise, 56 anos, hoje cozinheira em uma escola da rede estadual e recentemente formada em Administração.
Em entrevista para ZH em 2020, Loivo também relembrou os últimos momentos com o lateral-esquerdo, que quatro anos antes havia sido campeão do mundo atuando com uma das melhores seleções de todos os tempos:
— Paramos em Pântano Grande, o Everaldo quis jantar com a família. Na hora de sair, falou para mim: "Alemão, eu vou tocando". Uns 10 ou 15 quilômetros depois, ocorreu o acidente, eu vi de longe. Reconheci o carro, com a placa dourada. Ainda levei a filha dele (Denise) que se salvou para o Pronto-Socorro.
A colisão entre o Dodge Dart guiado pelo jogador e uma jamanta carregada com 20 toneladas de arroz aconteceu quando o caminhão saía de um posto da localidade conhecida como Minas do Butiá. Everaldo chegou a ser socorrido por um carro da reportagem do Jornal Hoje, vespertino que pertenceu ao Grupo RBS na década de 1970, mas não resistiu. Também morreram devido ao acidente a esposa do jogador, Cleci, a filha mais nova dele, Daisy Gisele, que tinha 2 anos, e a irmã Romilda. Além de Denise, sobreviveu também um tio de Everaldo, chamado Jardelino.
O velório do ídolo gremista, que morreu aos 30 anos, reuniu milhares de pessoas. A chamada de capa de Zero Hora de 29 de outubro de 1974 destacava que a multidão caminhava em silêncio para se despedir do campeão do mundo. Desmaios e cenas de desespero também foram registrados. A filha sobrevivente só ficou sabendo da morte dos pais e da irmã quase um mês depois. Na casa da avó paterna, Florinda, no bairro Teresópolis, recebeu a visita da diretora do jardim de infância que frequentava. Foi dela a missão de dar a notícia para a menina de seis anos.
— Lembro que tinha um monte de chocolate na sala. E ela me disse: "preciso te contar que teu pai, tua mãe e tua irmã foram viajar. Pegaram um avião e foram lá no céu. E um dia, quem vai encontrar eles é tu. No dia que Papai do Céu te colocar nesse avião, tu vai se encontrar com eles". Lembro dos meus tios, que estavam ali juntos para me dar a notícia, chorando. Eu não sabia se ria e chorava, não entendia. Aí, me deram um monte de chocolate e passou. Até hoje a morte para mim é uma coisa muito tranquila, não sei se é um bloqueio que eu tenho — relata Denise.
Mas, muitas vezes, a saudade batia. A cozinheira conta que, já de volta à casa onde morava na Vila Assunção, caminhava até uma pracinha que tinha nas proximidades e ficava olhando para a rua, esperando a volta dos pais e da irmã.
— Durante muitos anos, eu fiz isso, de ir na pracinha esperar eles. Não vi eles no caixão, não tinha essa imagem da morte deles. Mas um dia, vendo uma exposição de capas de jornais, vi as fotos do acidente e tinha uma imagem da minha mãe deitada ao lado do carro. Aí caiu minha ficha, mas eu já tinha mais de 20 anos. Ali, realmente, eu vi que eles morreram — acrescenta Denise, mãe de quatro netos de Everaldo: Thayron, 36 anos, Otávio, 31, Leonardo, 29, e Naomi, 21.
As dores e o trauma da tragédia foram amenizados pelo amor que recebeu da avó e dos tios. Os primos, conforme ela, sempre foram como irmãos.
— Lido muito bem com tudo o que aconteceu, pois tive uma família muito presente. Sempre cuidaram muito bem de mim — completa.
Sobre as lembranças do pai, a filha conta que ele era um homem de família, que gostava muito de reunir parentes e amigos para fazer churrasco, "a paixão da vida dele". Denise lembra de Everaldo como um pai presente, brincalhão em casa, apesar do estilo sério em campo. As refeições, ele tratava como um momento sagrado. Não gostava que ninguém brigasse ou discutisse à mesa. Amante de samba, gostava de ouvir Jamelão e Paulo Diniz. No Carnaval, era Bambas da Orgia. Da mãe, empregada doméstica até se casar, Denise recorda o cuidado com a limpeza da casa. Em homenagem a ela, a filha batizou de Dida, apelido de Cleci, a sua loja on-line de roupas femininas. Também há recordações com a irmã Daisy Gisele.
— Lembro muito dela, gostávamos de comer sabonete escondidas embaixo da pia da cozinha (risos), brincávamos muito à noite, corríamos pela casa — relembra.
Em sua residência na Restinga Nova, a filha de Everaldo guarda relíquias, como camiseta, casaco e um uniforme de passeio da Seleção Brasileira e a estilosa jaqueta de couro com franjas que o jogador usava quando desfilou por Porto Alegre após ser campeão do mundo em 1970. Dias depois de chegar do México, o lateral-esquerdo foi imortalizado na memória do Grêmio. Em decisão aprovada pelo Conselho Deliberativo, a bandeira do clube ganhou uma estrela dourada para homenageá-lo, fato que é motivo de muito orgulho para a família Silva e, principalmente, para Denise, a sobrevivente do acidente que abalou os gaúchos em 27 de outubro de 1974:
— Quando vejo as pessoas saindo do estádio enroladas na bandeira, ele está ali. Quando eu passava pela Azenha (Olímpico) e via a bandeira, pensava: "lá está ele". Então, ele está presente na história do Grêmio.