Esqueça o torcedor fanático, que quer o retorno do time do coração para ajudar a suportar o tédio na quarentena. Esta reportagem não trata da elite do esporte, de quem faz acordo para adiar pagamentos de direitos de imagem, de profissionais que moram em lugares grandes para realizar treinos. O tema, aqui, é quem sobrevive do futebol. E que agora, com torneios suspensos, precisa exercer outras profissões, depende de auxílio do governo ou conta os reais para pagar contas. A seguir, relatos de dois atletas, de um técnico e de um dirigente de clubes pequenos, que costumam ficar longe dos holofotes e à margem dos olhos da CBF.
A falta de uma data para o retorno do futebol angustia quem vive do esporte. Não que falte compreensão do momento e que a prudência impeça uma confirmação de volta às atividades. Mas é que viver (ou sobreviver) de futebol, naturalmente difícil para 88% dos jogadores do país – que segundo a consultoria Ernst & Young recebem até R$ 5 mil mensais, sendo 33% com vencimentos inferiores a R$ 1 mil –, em tempos de pandemia virou tarefa praticamente impossível. Atletas, treinadores e dirigentes sofrem com a atualidade e temem pelo futuro.
A volta do Gauchão amenizaria os problemas de 12 clubes, mesmo que o torneio tivesse seu final disputado sem torcida ou até em outras cidades. Por ser um campeonato transmitido pela TV, o dinheiro entraria naturalmente. Nas divisões inferiores, porém, qualquer retorno de jogos sem torcida será a senha para a falência. Nessas competições, as verbas recebidas em bilheteria, copa, doações e compras são vitais.
Sem elas, não há como pagar os jogadores. Alguns dirigentes têm buscado alternativas. Nos últimos tempos, espalharam-se pelas redes sociais as vendas de máscaras personalizadas. O São Paulo-RG, por exemplo, reapresentou jogos marcantes pelo YouTube e cobrou ingressos simbólicos pela internet. Com o dinheiro, conseguiu quitar a folha do mês. O Lajeadense abriu as portas da Arena Alviazul para receber pessoas necessitadas, em troca de a prefeitura pagar sua dívida com a fornecedora de energia elétrica. Na Terceirona, cujo começo estava previsto para abril, os clubes precisaram adiar os contratos.
A mudança no calendário afeta os jogadores de forma bem clara. Para muitos, um ano significa: contrato "bom" em dezembro, janeiro, fevereiro, março e abril, quando disputam o Gauchão; contrato "médio" para abril, maio e junho, na Divisão de Acesso ou na Terceirona; contrato "qualquer" para agosto, setembro, outubro e novembro, na Copa FGF. É com 10 ou 11 salários variáveis que vivem.
Ou seja: 2020 está comprometido. Os atletas receberam pagamentos enquanto o Gauchão ocorreu, e alguns deles tiveram os últimos vencimentos parcelados ou suspensos. Os clubes da Divisão de Acesso cancelaram qualquer tratativa. Os da Terceirona nem se fala e, para o segundo semestre, não há previsão sobre a Copinha. Com o novo cenário, a projeção de alguns dos atletas é a de conseguir, até dezembro, apenas 30% do valor que imaginaram. Por isso, alguns já anteciparam uma das alternativas mais comuns: busca outros empregos. O lateral-esquerdo Gustavo Lobo, que estava no Tupi, de Crissiumal, não titubeou ao aceitar o convite do pai para ajudá-lo em tarefas da construção civil.
A falta de suporte, aliás, é a maior queixa de todos. Enquanto há elogios pela forma de condução dos temas pelo presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), Luciano Hocsman, a entidade que rege o futebol brasileiro é acusada de omissão. O único auxílio da CBF até agora foi o de destinar R$ 19 milhões para clubes da segunda, terceira e quarta divisões masculina e para as equipes femininas da elite do Brasileirão. Sim, muitos clubes fazem parte das camadas mais baixas, mas a base da pirâmide ficou de mãos abanando.
– É inadmissível que a CBF anuncie lucro de R$ 190 milhões e disponibilize só 10% para ajudar os clubes. No mínimo, deveria abrir linha de crédito para os clubes – diz o advogado do Sindicato dos Atletas Profissionais, Décio Neuhaus.
Dos 44 clubes inscritos para disputar as três divisões do futebol gaúcho, apenas sete receberam o benefício (incluindo Grêmio e Inter). Sem ele, vários ameaçam fechar portas. Isso representará ainda mais demissões. Procurada pela reportagem, a CBF não se manifestou sobre o tema (leia mais sobre a entidade na entrevista na página 26).