Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Toda superstição não nasce de algo que deu certo, mas de algum trauma. Você muda o seu comportamento radicalmente pensando que dessa forma pode controlar o destino. Por isso, as camisetas de estimação mudam, as cuecas e calcinhas da sorte mudam, os amuletos mudam, os rituais mudam.
Não há time que seja cem por cento vitorioso, que conserve a superstição do torcedor para sempre. É depois do tombo que você busca num objeto ou prática um conforto espiritual, para não reprisar a mágoa e assim se desvincular do contexto desfavorável. Mas tem mais a ver com uma dinâmica pessoal de cicatrização do que com a realidade.
Nunca mais pintei o meu rosto desde que o Inter caiu diante do Olimpia naquela semifinal louca e sobrenatural de 1989, no Beira-Rio, quando perdemos um pênalti no tempo normal, perdemos o jogo e a decisão por penalidades. Eu era um dos 70 mil torcedores no estádio, ostentando a face dividida entre as cores branca e vermelha.
Fiquei com a irritação eterna na pele. Também jamais me curei do complexo da Seleção de 1982, a mais linda e bailarina equipe que vi atuar. A desclassificação pela Itália arrasou a minha infância. Não sobrou nenhuma ingenuidade. Eu me tornei precocemente adulto em Sarriá, com 10 anos.
Não entra em meu coração que Zico, Sócrates, Falcão, Júnior e Cerezo não tenham sido campeões do mundo. Maradona foi, o italiano Tardelli foi…
Aquilo afetou o sentimento geral de justiça numa Copa. Os melhores nem sempre ganham.
Eu somente queria ter assistido a mais dois jogos na Espanha do fabuloso plantel de Telê Santana. O que desperdiçamos de tabelinhas mágicas, de dribles e corta-luz, de cruzamentos milimétricos e chutes de primeira. Correspondia ao apogeu de uma geração, como fora em 1970.
Valdir Peres (São Paulo); Leandro (Flamengo), Oscar (São Paulo), Luizinho (Atlético Mineiro) e Junior (Flamengo); Toninho Cerezo (Atlético Mineiro), Falcão (Roma-ITA), Sócrates (Corinthians) e Zico (Flamengo); Éder Aleixo (Atlético Mineiro) e Serginho Chulapa (São Paulo). Guardo a escalação de cor. Ainda tinha Roberto Dinamite no banco (o meu centroavante preferido era Reinaldo, do Galo, que não tinha sido convocado).
Criei uma realidade paralela desde então. Se não fosse Paolo Rossi, nada nos afastaria do tetra na época.
A minha relação com a Seleção é de contestação. Dou de ombros fardado.mAcredito que todos torcem por ela. Uns acreditando e outros não acreditando. Quem odeia Neymar, por exemplo, está louco para morder a língua.
Sou do bando dos agnósticos, de tanto que sofri em 1982. Mesmo os canecos de 1994 e 2002 não amenizaram o travo na garganta de 40 anos. Diminuíram, mas não liquidaram.
Gostaria que a Seleção ganhasse o hexa pelo Tite. Até porque seu retrospecto no comando canarinho não tem precedente: 81% de aproveitamento em 76 jogos (57 vitórias, 14 empates e somente cinco derrotas). É muito azar sofrer semelhante colapso belga, num dia pouco inspirado, e ruir no mata-mata. O que entraria no rol das ironias cósmicas.
Tite é a representação do gringo trabalhador, que não desiste, que baixa a cabeça para dar a volta por cima, que não é vaidoso ou arrogante, que não ostenta as suas realizações. É tão parecido conosco que, até na hora de falar bonito, parece um padre.
A dupla Tite e Clebinho Xavier merecia a consagração pela insistência. Mas daí vem a zica: Telê — um dos maiores campeões em clubes — tentou duas vezes seguidas (1982 e 1986) e não vingou.
Acho que o Brasil vai cair nas quartas, de novo. Mas gostaria de ser desmentido. De ser chacotado. De ser desmoralizado por uma campanha impecável e invicta.
É difícil isso de torcer sendo do contra. Você finge que não é importante, mas não consegue desgrudar os olhos da tela. Não pretendo me enrolar em bandeira ou desenhar palavras de incentivo na minha cabeça (fracassei escrevendo "hexa" nas últimas edições), nem vou parar de trabalhar como fazia nas temporadas clássicas de julho.
Pertenço a uma estirpe de torcedor traumatizado. O que morde as unhas fingindo que as lixa.
"No creo en brujas, pero que las hay, las hay." Que venha o hexacampeonato apesar de mim.