GaúchaZH relembra, em quatro etapas, a carreira de Tite como jogador, do início na Serra ao calvário das lesões no Guarani. Abaixo, a terceira fase da trajetória, em que os joelhos e a cabeça sofrem, mas há também a recuperação e a boa campanha do vice-campeonato brasileiro de 1986.
Tite mudou-se para Campinas para defender o Guarani em agosto de 1984. Desta vez, ao contrário dos tempos de Portuguesa, levou a companheira Rose, mas logo se viu que a passagem pelo clube oscilaria entre a glória e o sofrimento. E o início seria um calvário.
Após entrar no segundo tempo em uma derrota para o Santos, na Vila Belmiro, Tite começou jogando diante do Santo André, no dia 8 de julho de 1984. A estreia como titular foi manchada pela primeira lesão séria no joelho esquerdo. Na edição de 10 de julho, o jornal Correio Popular, de Campinas, publicou uma foto de Tite com a mão sobre o rosto desfigurado pela dor ao deixar o gramado do Brinco de Ouro. A volta aos campos demoraria quase 14 meses.
O rompimento do ligamento cruzado exigiu cirurgia. Junto com o fisioterapeuta Cláudio Frias, Tite, então com 23 anos, foi a São Paulo para o procedimento. Na recuperação, colocava-se uma espécie de tala que ia do tornozelo até a coxa e era presa com parafusos. A ideia era impedir que o paciente estendesse totalmente a perna (e evitava, também, que flexionasse demais). À medida que a recuperação avançava, o médico ia retirando parafusos para permitir um pouco mais de extensão.
A dramática volta a Campinas após a primeira cirurgia
Frias lembra do retorno de São Paulo com o jogador. Como o prédio de Tite em Campinas não tinha elevador, era preciso encontrar uma maneira de subir as escadas. O sofrimento começou ali: a solução foi sentar nos degraus e se arrastar, um a um, até o conforto de casa.
A rotina da recuperação era cruel. O aparelho restringia a movimentação e dificultava tarefas simples do dia a dia. As sessões de fisioterapia ocupavam o tempo, mas a cabeça e o coração ansiavam, repletos de dúvidas.
O ex-ponta-direita Catatau, um dos amigos próximos dos tempos de Guarani, relata cenas de desespero de Tite, em que chorava, batia a cabeça e socava a parede do vestiário. Não se conformava com sua situação.
Para amenizar a angústia, os companheiros faziam o possível. Jantares e eventos sociais em família ajudavam a enturmar o jogador, alijado do convívio diário dos treinos. Era comum que o futuro técnico pilotasse a churrasqueira para servir os companheiros.
– Vocês sabem fazer uma carne no Sul, né? – diverte-se Catatau.
Tudo isso minimizava a dor, mas não a aplacava. Vários dos parceiros de Guarani relatam conversas em que Tite mencionava a intenção de parar de jogar. Frias conta que o estado de espírito de seu paciente variava. Havia momentos em que interagia e falava animadamente durante as sessões de fisioterapia. Em outros, o abatimento tomava conta. Rose era a rocha que dava forças a Tite.
Catatau relata o desespero de Tite com as lesões
Em 3 de novembro de 1985, em uma vitória de 1 a 0 sobre o Botafogo-SP, em Ribeirão Preto, Tite voltou. Entrou no segundo tempo, no lugar de Tosin. No final daquele mês, foi titular no empate com o Marília.
No começo de 1986, o técnico Lori Sandri o escalou desde o início da partida contra o XV de Piracicaba, em 2 de fevereiro, no primeiro jogo da temporada. Semanas depois, dia 23, estava empolgado com mais uma chance, desta vez atuando na mesma função de "ponta falso" dos tempos de Portuguesa, contra o Novorizontino.
"Espero ir bem, assim como todo o time, para que possa permanecer como titular e recuperar o tempo que perdi dentro do departamento médico", afirmou ao Correio Popular.
Dois dias depois, o mesmo jornal trazia a foto de um Tite atônito, a tristeza estampada. Na vitória do Guarani por 1 a 0, lesionou-se mais uma vez, no mesmo joelho. Ao jornal, apressou-se em isentar o jogador adversário de culpa no lance em que se machucou. Citou um buraco do campo como possível responsável pela entorse que sofreu.
O irmão Miro e o cartaz para incentivar a recuperação
A falta de sorte o obrigou a fazer outra cirurgia. Na recuperação, ganhou a companhia do meia Barbieri, também lesionado. Barbieri ainda se lembra das fases finais da recuperação, em que os dois faziam reforço muscular de forma inusitada:
– O Brinco de Ouro tem o tobogã (único setor do estádio em que há um andar superior de arquibancadas). A gente subia e descia aquilo a tarde inteira.
Nem quero lembrar tudo que já passei.
TITE
Após se recuperar de duas lesões no joelho esquerdo
Seis meses após o pisão no buraco no jogo contra o Novorizontino, Tite retornou. Aos poucos, foi se firmando em uma equipe que ainda tinha suas turbulências. Tanto que houve troca de treinador naquele agosto de 1986. No fim do mês, estreou Carlos Gainete Filho, ex-goleiro do Inter.
O jogo do gol que o técnico da Seleção não esquece, em São Januário, contra o Vasco, foi o segundo de Gainete no comando do Guarani. Dias depois da vitória contra o Vasco, com gol de Tite, o Correio Popular mancheteava: "E Tite sente-se útil de novo".
"Nem quero lembrar tudo que já passei", resumia o meio-campista.
Nove dias após Tite marcar o gol de cabeça no Rio que garantiu a vitória, o Guarani bateu o Náutico por 1 a 0. Mas o assunto do pós-jogo foi outro.
"No vestiário, os jogadores praticamente esqueceram a vitória e demonstravam uma grande preocupação com Tite, que, numa avaliação inicial do médico Cézar Cezarone, dificilmente voltará ao time neste Brasileirão", relatava o Correio Popular de 18 de setembro. Tite havia saído no intervalo da partida, sentindo dores no outro joelho, o direito.
Por sorte, a lesão não foi tão séria. Uma artroscopia resolveu o problema e, no início de 1987, quando, pela desordem típica do futebol brasileiro, disputou-se a segunda fase do Brasileirão de 1986, Tite retornou em vitória sobre o Grêmio, em pleno Olímpico, por 1 a 0.
Guarani "encaixa" e faz grande campanha no Brasileirão
Àquela altura, o time havia "encaixado". O Guarani deu liga por uma combinação de fatores. Havia o entendimento entre Gainete, que fazia o tipo disciplinador, e o preparador Pedro Pires, que apaziguava ânimos sem deixar de cobrar, além de ter a característica de explicar, com detalhes, o objetivo de cada treino.
Em campo, havia a técnica de Barbieri e Marco Antônio Boiadeiro, além da vitalidade de Tosin. Ricardo Rocha, trazido do Santa Cruz, dava segurança à defesa, e Zé Mário era destaque na lateral esquerda. Na frente, Catatau voava pela ponta direita. João Paulo, cria da base, impressionava pela habilidade na esquerda. Como centroavante, a joia Evair, que, aos 21 anos, já empilhava gols antes de virar ídolo do Palmeiras e chegar à Seleção Brasileira.
Ainda que fosse difícil achar espaço em uma equipe tão azeitada, Tite conseguiu. Atuou em vários jogos daquela reta final de Brasileirão, a maioria como titular. A formação mais frequente o colocava como volante recuado, um protetor da defesa.
A sequência de partidas estreitou laços com o grupo e o colocou em contato mais frequente com Pedro Pires. Sempre didático, o preparador era alvo das perguntas curiosas de um pequeno grupo de jogadores, Tite incluído. Queriam saber mais sobre métodos de treinamento.
O "mestre" Pedro Pires fala sobre sua relação com Tite
O nível de afeto com o ex-atleta atravessou as décadas e permanece intacto. Quando a reportagem de GaúchaZH contatou Pedro Pires por telefone, para marcar um encontro em Campinas, ouviu a confissão de que não costuma dar entrevistas desde que deixou o futebol. Mas veio a ressalva:
– Por ele, eu faço.
A curiosidade de Tite com cada treino, cada movimento do "mestre", levou o gaúcho também à sala de aula. Com o goleiro Wilson Coimbra, o Macarrão, foi aluno do curso de técnica desportiva em que Pedro Pires era um dos professores. As aulas ocorriam nas segundas e sextas à noite e estenderam-se por um ano. Ao fim da passagem pelo Guarani, Tite se formou em Educação Física pela PUC de Campinas.
Dentro das quatro linhas, a sede por entender o jogo já rendia frutos. Tite orientava os companheiros, falava sobre o posicionamento, funcionava como um técnico dentro de campo. João Paulo garante que ele já tinha "um jeito diferente de falar":
– Era uma inteligência acima da média.
Na final do Brasileirão, o título escapa por muito pouco
Contrariando as expectativas, o Guarani chegou à final do Campeonato Brasileiro. Na primeira partida da decisão com o São Paulo, no Morumbi, houve empate em 1 a 1. Em 25 de fevereiro de 1987, no Brinco de Ouro, Tite disputou o jogo mais importante de sua carreira, o segundo da decisão, em que foi escalado como titular ao lado de Tosin e Boiadeiro.
O Guarani foi para cima desde o início. A um minuto, Zé Mário entrou pela esquerda e cruzou forte. A bola passou pelo goleiro Gilmar e Nelsinho mandou contra. O gol fez o Brinco de Ouro explodir de felicidade, mas a festa durou pouco: Bernardo empatou a oito minutos.
No segundo tempo, o Guarani pressionou e criou oportunidades. Aos 30 minutos, o lance que ficou na memória de todo torcedor do clube que acompanhou aquela final: João Paulo foi derrubado na área por Bernardo, mas o árbitro José Assis Aragão não marcou o pênalti. O empate em 1 a 1 levou a decisão à prorrogação e, no tempo extra, Tite foi substituído por Vagner.
O São Paulo já havia passado à frente no placar, com gol de Pita, quando Vagner foi expulso por reclamação (segundo ele, respondendo a uma ofensa de Aragão). Mesmo com 10, o Guarani encontrou forças para virar, com gols de Boiadeiro e João Paulo.
O fim da prorrogação se aproximava e Tite, exultante, acompanhava os minutos finais. Conversava com Vagner à beira do campo e distraiu o olhar por um instante. Quando levantou a cabeça para fitar o campo novamente, viu Careca na área, preparando um foguete de pé esquerdo que empatou a prorrogação a um minuto do final. Nos pênaltis, o São Paulo levou a melhor e acabou com o sonho do título brasileiro.
Luta para voltar, nascimento de Matheus e retorno ao RS
Passada a frustração, o Guarani seguiu o rumo na temporada 1987, com Tite participando de jogos do Campeonato Paulista e da Libertadores. O fantasma das lesões, porém, retornaria em julho.
Mais uma vez, um buraco no gramado o vitimou. Contra o Mogi Mirim, Tite sofreu uma entorse no joelho direito ao pisar em uma parte irregular do campo. Dali em diante, nunca mais teve sequência pelo clube.
O que não significa que não tenha lutado para isso. O trabalho na fisioterapia seguia intenso e as tentativas de retornar não cessavam. Frias lembra de uma ocasião em que passou pelo vestiário e viu, na lista de relacionados para um jogo, o nome de Tite. Correu para encontrá-lo e dar a notícia, ao que os dois se abraçaram e caíram no choro.
Tite entrou em campo pela última vez com a camisa do Guarani em 14 de setembro de 1988, quando substituiu Albéris na derrota para o San Lorenzo que tirou o clube da Libertadores daquele ano. Àquela altura, sentia dores nos joelhos a cada treino.
No ano seguinte, em 1989, nasceu Matheus, seu primeiro filho. As dores e a necessidade de estar próximo à família alimentaram o desejo de retornar ao Rio Grande do Sul. Seis anos após a saída, voltava ao Esportivo.