GaúchaZH relembra, em quatro etapas, a carreira de Tite como jogador, do início na Serra ao calvário das lesões no Guarani. Abaixo, a primeira fase da trajetória, em que a dedicação do menino Adenor abre os caminhos no futebol.
Caxias do Sul, anos 1960. Vozes infantis ecoam em um campinho de grama rala e barro escuro do bairro Lourdes:
– Diis-coor-daar!
O menino Ade, 12 anos, vence a disputa e sabe quem vai escolher para mais um joguinho pegado. Miro, o irmão mais novo, corpo mirrado, é o primeiro selecionado. Depois, puxa para o seu lado os menos habilidosos, aqueles que geralmente acabam como goleiros nas peladas.
Sentado com as pernas cruzadas, no galpão da sede das quadras de grama sintética Celte, no centro de Caxias, Ademir, o Miro, recorda-se de como o irmão sentia-se desafiado quando seu time ficava mais fraco.
– Tinha mais sabor, graça, desafio – diz Miro.
Tite era competitivo desde garoto. Com as bochechas vermelhas, encarava os grandões sem medo, dividia com firmeza e fazia seus companheiros abraçarem qualquer briga para vencer. No seu time, os "ruinzinhos esforçados" tinham vez.
Havia uma estratégia para vencer os embates nos campos de chão batido, mas nem sempre funcionava. Quando a derrota era inevitável, Tite e seus amigos costumavam partir para o confronto físico. Pavio curto, o pequeno Ade batia, cuspia, não fugia.
– Nós entrávamos juntos nas broncas. Tomamos cada laço! – conta o amigo Álvaro Mentta, 54 anos.
Dificuldades financeiras e os primeiros passos em campo, ao lado do pai
A valentia é uma característica marcante da família Bachi. A profunda dificuldade financeira os levou a lutar muito. O pai, Genor Bacchi, e a mãe, Ivone, desdobravam-se para criar Adenor, Ademir e Beatriz, a irmã mais velha de Tite. Genor tinha açougue e fiambreria. Ivone se virava na costura, tinha mão cheia. O dinheiro era pouco.
O pai gostava de ver o filho flutuando com classe pelos gramados. Misturava técnica e força. Alto, encantava pela postura, era elegante no passe, olhava para a frente. Jogava como zagueiro, pois tinha facilidade no cabeceio. Com tanta qualidade, Genor, que também foi jogador, o levou a atuar no Esporte Clube Juvenil, o primeiro clube de Tite, em São Braz, uma comunidade no interior de Caxias. O bom porte físico e a precisão nos passes o transformaram em um meia que jogava sempre de cabeça em pé. Pai e filho até chegaram a atuar juntos em algumas partidas pelo segundo quadro do time (de suplentes).
Idalino Mazzochi, o Magrão, primeiro técnico daquele talento, lembra do menino alto, de cabelos compridos, que não tinha receio de jogar entre os mais velhos. Ex-jogador, técnico e dirigente do Juvenil, hoje com 72 anos, Idalino emociona-se ao falar do ex-pupilo. A voz falha. Além da relação em campo, há uma ligação familiar: é primo-irmão de Ivone.
O tamanho do orgulho se mostra na coleção de fotos que guarda com extremo zelo. Ali, está documentado o início de Tite no Juvenil.
– Podem fotografar, mas não empresto este material para ninguém – avisa.
O primeiro técnico confia ao menino Ade um pênalti decisivo
A falta de grana impactou o jovem Tite, que tentava a sorte no infanto-juvenil do Juventude, o time de coração da família à época. Genor chegou ao filho e disse com voz firme: "Ade, precisas trabalhar".
O primeiro emprego foi em uma concessionária de carros da Volkswagen, onde sua irmã Beatriz trabalhava. Não ficou muito tempo na função de office-boy.
Luiz Felipe Scolari, então zagueiro em fim de carreira do Caxias e professor de educação física de uma escola, encantou-se com o número 10 da equipe do colégio Henrique Emilio Meier em um torneio local. Veio o convite para jogar nos juniores. Começava ali, naquela conversa breve com o bigodudo Felipão, a formação de Tite como jogador profissional. Genor não gostou da ideia. Ivone adorou. Para a mãe, o dinheiro, naquele momento, não era o mais importante.
Felipão, aliás, também está por trás do nome de guerra de Tite. Quando encontrou Ade na concessionária de automóveis, tinha na cabeça o nome Tite, que era o apelido de outro bom meio-campista do time colegial, Altemir Craver. Felipão apresentou Ade como Tite ao Caxias e o apelido pegou.
No Centenário, muita dedicação e amizades que resistiram ao tempo
O começo no Centenário foi empolgante. O Caxias contava com um time forte nos juniores, e o mais novo reforço se encaixou ao natural. Segundo Miro, o time ficou 43 partidas invicto em torneios da época.
A chance de estrear na equipe principal veio aos 17 anos, em 1979, como ponteiro esquerdo recuado. De cara, um clássico contra o Juventude: 0 a 0, no Centenário.
No estádio do Caxias, Tite estava em casa. Rapidamente construiu fortes amizades no grupo. Duas delas em especial: com o goleiro Casagrande e com o lateral-esquerdo Gilberto, o Giba. Formou-se, ali, um trio inseparável no começo dos anos 1980.
Tite era o mais compenetrado. Encarnado nos treinos, o volante/meia/ponteiro-esquerdo só sossegava quando o sol ia embora. Nas concentrações – naquele tempo dentro do estádio –, dormia cedo e nunca exagerava nas refeições. Giba, hoje dono de uma ferragem em Caxias, era um parceiro de jogadas bem tramadas.
– Ele lançava, eu cruzava na cabeça do centroavante. Essa tabelinha funcionava muito – recorda o ex-lateral, que subiu quase junto com Tite para a equipe principal.
Só uma paixão tirava o foco: o carteado. Entrava a madrugada em animados jogos de pife. Casagrande, cujo casamento teve Tite como padrinho, entrega o lado maroto do amigo:
– Às vezes, ele escondia uma cartinha dentro da manga.
Os amigos Giba e Casagrande relembram histórias de Caxias
A passagem pelo Caxias terminou em 1983, ano em que Tite se transferiu ao Esportivo. Lá, já se pôde vislumbrar sua personalidade de líder. Raquete, um lateral-direito de pegada forte (pé 45, daí o apelido), foi cobrado com veemência pelo técnico Chiquinho após um golaço de bicicleta do ponteiro Toquinho, da Portuguesa, em um jogo pela Série B nacional. Para o treinador, o lateral e o atacante Paulo Mattos, que estavam no lance, poderiam ter evitado o gol.
– Começou uma discussão, e o Tite, que era novo ainda, entrou na conversa e nos defendeu. Disse que não tinha o que fazer. Foi um grande gesto, que guardo até hoje – diz Raquete, 65 anos, sentado nas arquibancadas do velho Estádio da Montanha.
Raquete e a personalidade de Tite para defendê-lo no vestiário
A trajetória em Bento não se alongou porque, no início de 1984, veio a oportunidade que mudou a vida de Tite. À época, a Portuguesa montava a equipe para o retorno à Primeira Divisão do Brasileirão. Os gaúchos pareciam despertar especial interesse na Lusa, que já contava com Toquinho, o autor do golaço de bicicleta, e o goleiro Ewerton.