O atacante adversário passa pelo primeiro, dribla o segundo e, quando se prepara para entrar na área, é derrubado. A falta é frontal, quase na meia-lua. O cobrador dá três passos para trás e mira os cantos. O goleiro ajeita a barreira, inclusive com alguém deitado. Os jogadores se amontoam para fechar os espaços. O narrador limpa a garganta. Mas fique tranquilo: seu time não vai levar gol. Não no Brasileirão 2021. Passados 204 jogos da principal competição do país, apenas 10 bolas saíram dos pés de alguém e encontraram as redes, o que equivale a 2% do total. A média é inferior a um gol a cada duas rodadas. Nenhum profissional fez mais de um até agora.
O Brasil é o caso mais grave de uma tendência mundial, diga-se. Em todas as maiores ligas, houve uma diminuição no número de gols de falta na última temporada (a França é exceção porque teve menos jogos, como você pode ver no gráfico).
Há uma explicação meio consensual para essa queda. Por conta da pandemia, os calendários foram achatados, o número de jogos, mantido, e tudo somado reduziu a possibilidade de treino. E, como se sabe, falta é igual a treino. Só talento para bater na bola não basta, é preciso praticar.
— Precisa ter dom, claro. Mas tem de repetir. No mínimo 50 vezes. Depois do treino, ficar batendo, batendo, batendo. Eu saía do bico da grande área da esquerda e ia até a direita praticando. Esse tipo de lance pode decidir uma partida — recorda Zenon, ídolo de Guarani e Corinthians, além de Seleção Brasileira.
A receita é a mesma de Nelinho, campeão da Libertadores de 1976 e um dos maiores jogadores da história do Cruzeiro, autor de dois gols na Copa do Mundo de 1978 (um deles de falta, contra a Polônia, outro, ainda mais famoso, um chute em curva, com um efeito impressionante que venceu Zoff, grande goleiro da Itália).
— Às vezes ficava até duas horas depois do treino batendo falta. Claro, não todos os dias, mas depois dos treinos que não eram mais puxados. Quando tinha coletivo não dava. Treinava muito e se não estava satisfeito com o resultado, ficava na Toca da Raposa e ia praticar mais depois. Ah, fazia uma coisa. Como não tinha spray naquela época e a barreira caminhava muito, não posicionava a barreira estática a 9m15cm. Contava seis passos e era isso — amplia.
Petkovic, um dos últimos grandes cobradores de falta do Brasil, cita a importância da base.
— Tive um treinador na Sérvia que me incentivava muito. Ensinou ainda no juvenil. Muitas vezes briguei com preparador físico para treinar mais.
O tema é tão importante que Pet, atualmente comentarista do Grupo Globo, dá cursos de batida na bola para quem quiser aprimorar.
Mas é possível manter uma carga de treino assim no atual futebol brasileiro? O técnico Elano, atualmente na Ferroviária, dona da melhor campanha da Série D, esclarece:
— O calendário é muito apertado, isso reduz treinamentos. São jogos quarta e domingo, diminui a possibilidade de praticar.
O treinador, que até pouco tempo era um meia cobrador de falta, inclusive com passagem pelo Grêmio, concorda que essa falta de treinos atrapalha:
— Chutar, cruzar, bater na bola é execução diária. Repetição. Tínhamos isso na base, para chegar condicionado no profissional.
Nelinho, porém, discorda dessa situação. Segundo ele, em sua época também havia excesso de partidas:
— Tínhamos jogo quarta e domingo também. E ainda fazíamos excursões no Exterior, eram 70 jogos no ano. Isso aí não justifica. O que nos diferenciava era a iniciativa própria. O jogador entender a importância e praticar.
Na visão do preparador físico Michel Huff, com experiência em grandes clubes brasileiros, como Corinthians, e internacionais, como o Metalist-UCR, é possível conciliar o calendário de jogos com treinos específicos:
— Mesmo tendo três partidas na semana, podemos usar esse mecanismo após os treinos, controlando a quantidade de batidas. Nas atividades antes dos jogos, é comum trabalhar bola parada. Isso depende de cada comissão técnica.
Nelinho atenta para outro fator fundamental da atualidade que difere bastante de 30 ou 40 anos atrás:
— Os goleiros da minha época eram mais baixos do que os de hoje. E atualmente treinam mais, melhor, situações específicas. Então, isso dificultou, para fazer o gol, a bola tem de ir na forquilha. Ou quando falham.
A dupla Gre-Nal se encaixa perfeitamente nisso: o Inter não faz um gol de falta desde março de 2020. No Grêmio, Vanderson acertou o ângulo de Tiago Volpi na derrota para o São Paulo por 2 a 1. E os gols sofridos: o Inter levou de Terans, do Athletico-PR, botando na gaveta de Daniel; o Grêmio sofreu com Paulo Victor que falhou em cobrança de Sander (apesar do desvio na barreira) e no chute de forte de Vitor Bueno que superou Chapecó.