No dia 11 de agosto, foi comemorado o Dia do Estudante no Brasil, referenciando a data em que o Imperador Dom Pedro I, em 1827, inaugurou os dois primeiros cursos superiores no país: Ciências Jurídicas e Ciências Sociais. Em alusão a esse dia, o Diário Gaúcho conversou com pessoas que viram no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA) uma porta de entrada para uma nova chance.
Existem diversos motivos que fazem alguém parar de estudar. O trabalho, os filhos, a falta de incentivo. Mas a pergunta norteadora é: o que motiva alguém a voltar para a sala de aula?
Para Luciane Soares, 56 anos, foi a descoberta de um câncer. Em 2018, recebeu o diagnóstico de um tumor e realizou a cirurgia para retirada. Felizmente, deu tudo certo com o tratamento e a aposentada está curada. E junto com a cura, a mãe de dois filhos se viu em uma nova vida, agora, em busca de se priorizar.
— Eu pensei: "Deus está me dando uma nova oportunidade, vou focar em mim". Não tive condições de concluir meus estudos. Fui mãe solo aos 19 anos e tive que priorizar meu filho. Então, agora aos 56, comecei a estudar de novo. Eu resolvi virar uma chave dos meus conceitos. Antes, vivia para trabalho, não tinha tempo pra nada, hoje eu penso que tenho que fazer outras coisas que vão me dar prazer — relata a aposentada.
A idade não foi motivo para deixar o sonho de Luciane de reiniciar os estudos de lado. Desde julho de 2023, ela cursa o EJA no Sesc, que conta com uma plataforma online com os conteúdos necessários e oferece aulas presenciais uma vez por semana. Além disso, um curso de produção cultural foi disponibilizado para os alunos que quisessem iniciar uma qualificação. Embarcando na última etapa da formação, Luciane percebe sua evolução, tanto na vida profissional quanto na pessoal. Ela conta que um dos pontos que observou foi a melhora de sua autoestima, potencializada pela obtenção de conhecimento:
— Noto a forma que a minha mente está ampliando e que eu estou criando autoconfiança. Tanto nas relações que a gente passa a desenvolver quanto na capacidade mental que tive uma melhora.
Um dos conhecimentos que obteve nesse período de curso ultrapassou as barreiras dos conteúdos programáticos. A lida diária com a plataforma que hospeda as aulas fez com que a aposentada conseguisse desenvolver também suas habilidades com a tecnologia. E a ajuda fornecida pelos docentes foi fundamental para esse processo:
— Como é uma turma de pessoas com idade mais avançada, que têm menos facilidade com o mundo digital, os professores voluntariamente se dispõem a ensinar. Hoje, já consigo transitar na internet de uma forma mais tranquila. Então, é um ambiente muito acolhedor e favorável para o aprendizado e familiarização com as tecnologias.
Expectativa
O curso profissionalizante de produção cultural se tornou um verdadeiro incentivo para os estudos de Luciane. Com desejo de utilizar os conhecimentos para trabalhar na área de ciências humanas, a aposentada já está inscrita no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). E o seu objetivo é claro: iniciar uma graduação em uma universidade pública.
— Quero fazer Sociologia ou Filosofia, pois são áreas que eu vou me dar bem, já que são sobre algo que a sociedade está precisando e acabam sendo um subsídio para a produção cultural — finaliza Luciane.
Sonho recuperado
"É pegar de volta um sonho que foi roubado de mim". Essa frase é de Odara Pimenta, 22 anos, que finalizou seu ciclo no EJA há uma semana. A carioca mora em Porto Alegre desde 2022 e viu na capital gaúcha uma oportunidade de retomar os estudos.
No segundo ano do Ensino Médio, Odara iniciou sua transição de gênero, e não recebeu apoio dos colegas e professores, o que fez com que desistisse de frequentar a sala de aula e começasse a trabalhar para adquirir sustento.
— É sempre assim, a gente para de estudar e a cobrança vem igual, então precisamos achar formas de nos manter — descreve Odara.
Quando veio para Porto Alegre, decidiu mudar sua forma de levar a vida e, assim como Luciane, buscou se priorizar. Um anúncio no jornal fez com que uma chave virasse em sua mente. Era do EJA, oferecido pelo Sesc, em conjunto com o curso qualificatório de produção cultural. Apaixonada por teatro, a carioca não teve dúvidas de retomar sua jornada nos estudos:
— Eu já tinha uma experiência com produção cultural, por conta do teatro que era uma área em que sempre consegui me desenvolver. Então, resolvi voltar atrás e participar.
Um dos receios de Odara ao voltar à sala de aula era justamente sobre como seria tratada. Com muitos traumas decorrentes do preconceito sofrido enquanto estava na escola, a carioca temia que, mais uma vez, fosse desrespeitada. Porém, não foi o que aconteceu.
— Eu tive um tratamento maravilhoso, tanto dos meus colegas, quanto dos profissionais. Lá dentro, o fato de eu ser transgênero foi uma informação que eles receberam, mas que foi irrelevante — descreve Odara.
Próximos passos
É preciso de força de vontade para conciliar estudo e trabalho no dia a dia. E para Odara, não foi diferente. Segundo ela, o caminho não foi fácil e, por vezes, teve que passar o dia inteiro fora de casa para dar conta das atividades. Porém, poder subir no palco e receber seu diploma fez com que todo o esforço valesse a pena:
— Me senti muito vitoriosa por ter percorrido todo esse caminho. Não foi fácil, várias vezes pensei em abrir mão novamente, por causa do cansaço, mas não me deixei levar. É como se tudo tivesse se encaixado em seu devido lugar, como se tudo estivesse do jeito que era para estar há muito tempo.
Odara se encontrou no seu curso profissionalizante e, agora, estagia no RS Criativo, programa do governo estadual de fomento à cultura. Com o desejo de seguir na área, a carioca vai prestar o Enem para o curso de Relações Públicas.
Feliz pela retomada de um sonho antigo, Odara aconselha outras pessoas que também têm o desejo de retomar os estudos guardado no fundo da alma:
— As pessoas que tiverem a oportunidade de fazer o EJA, façam. Eu acredito que, embora tenhamos muitas dificuldades na vida, é menos difícil quando temos estudo. Sei que tem muito a questão de "será que vou me readaptar a uma sala de aula depois de anos?". E vai! É como se a gente tivesse começando exatamente de onde paramos.
Do Uruguai para novas oportunidades no RS
Luana Viera, 28 anos, nasceu em Rivera, cidade uruguaia localizada na fronteira com o território gaúcho. No segundo ano do Ensino Médio, uma escolha de vida fez com que parasse de frequentar a sala de aula. A uruguaia se casou muito jovem e decidiu parar os estudos para se dedicar ao lar. Há cinco anos, veio para o Rio Grande do Sul em busca de melhores oportunidades e percebeu que as encontraria se concluísse sua formação básica.
— Conheci o EJA do Sesc através de uma reportagem no Jornal do Almoço, da RBS TV. Então, fiz a inscrição e iniciei minha trajetória na instituição — conta Luana.
As aulas colaboraram não só para a uruguaia recuperar o rumo dos seus estudos, mas também para definir quais serão os seus próximos passos. Fascinada pela forma com que o EJA do Sesc acolhe seus alunos, Luana quer seguir o caminho da pedagogia para, quem sabe, tornar-se parte da equipe da instituição.
Atualmente, a uruguaia sente na pele o ditado popular "o conhecimento liberta". Assim, também pretende utilizar o conhecimento que está adquirindo para ajudar seus pais, que ainda vivem no país vizinho:
— Com o estudo quero não somente mudar a minha vida, mas também dar uma velhice mais confortável para eles.
E voltar a estudar nunca foi um sonho que pulsava somente no coração de Luana. O desejo de que ela finalizasse sua trajetória em sala de aula também é de sua mãe. Por isso, a uruguaia planeja uma linda surpresa:
— É meu sonho dar esse diploma e essa alegria para minha mãe. Eu não contei para ela que voltei a estudar, então, no dia da formatura, vou mandar o link ou fazer uma videochamada, para ela se emocionar.
Incentivo da esposa
Foi com um empurrãozinho da esposa que Adelar de Jesus, 48 anos, iniciou o EJA no Sesc. Natural de Palmitinho, na norte do Estado, o porteiro achava que nunca mais entraria em uma sala de aula, porém, de repente, se viu sentado em uma classe de frente para um professor mais uma vez.
— Eu me criei na lavoura, até ir embora para servir no exército do quartel de Santiago. Depois, vim para Porto Alegre. Quando conheci minha esposa e ela fez minha inscrição, pensei: por que não? — recorda Adelar.
O porteiro retomou seus estudos em 2022 e já está formado há mais de um ano. No curso, conquistou amigos para a vida toda e também conseguiu destravar limitações:
— No começo, eu tinha até vergonha de conversar, porque eram pessoas novas, e eu ficava meio encabulado. Porém, com a ajuda dos colegas, fiz amizades que tenho contato até hoje, mesmo depois de formado. Antes eu tinha medo de me expressar, mas agora o medo já é passado.
Assim como foi incentivado por sua esposa, Adelar agora propaga a palavra do EJA para seus colegas e amigos que também não finalizaram o Ensino Médio. Para o porteiro, estudo nunca é demais, porém é preciso muita força de vontade para continuar essa trajetória.
— Se eu vejo alguém que quer estudar, eu incentivo. Digo para fazer a inscrição e se informar melhor. Até tem um colega no meu serviço que eu expliquei como se faz para se inscrever, pois, se tu quer estudar, tem como, é só ter empenho — relata.
E Adelar não parou com a formatura do EJA. Atualmente, o porteiro está finalizando um curso técnico na área de Segurança do Trabalho e quer seguir estudando. Além disso, se encontrar uma oportunidade, pretende começar a trabalhar no ramo.
— Pretendo continuar estudando, mas também dependo do meu trabalho. Se eu conseguir um serviço de técnico de Segurança do Trabalho, vai ser ótimo. Também quero ver se consigo fazer um técnico em Agronomia — finaliza Adelar, cheio de planos.
Sobre o Sesc
O Serviço Social do Comércio (Sesc) é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que realiza diversos projetos sociais para promover o bem estar da comunidade. Entre eles, está o EJA, gratuito para pessoas que ganham até três salários mínimos. O programa tem sua estrutura dividida entre uma plataforma online e aulas presenciais uma vez por semana. As inscrições ocorrem semestralmente. Assim, o próximo edital estará disponível em dezembro no site do Sesc.
Para Bárbara Bauer, 36 anos, supervisora pedagógica do EJA presencial no polo do Sesc Alberto Bins, o local busca acolher os estudantes que não conseguiram se adaptar ao ambiente escolar tradicional:
— Nosso jeito de trabalhar é muito flexível. Desenvolvemos diversas áreas além dos conteúdos programáticos, como falar em público e o valor da leitura. Nós queremos mostrar a potência desses estudantes e a nossa principal preocupação é a presença deles em sala de aula. Trabalhamos muito na busca ativa, persistindo para que eles se mantenham aqui.
*Produção: Elisa Heinski