Longe de conseguir cumprir a meta estabelecida há 10 anos, que era erradicar o analfabetismo no Brasil, o país tem como desafio melhorar as políticas públicas para a Educação de Jovens Adultos (EJA). Embora seja um instrumento importante para garantir a alfabetização desse público, no entanto, a EJA está encolhendo cada vez mais no Brasil.
É o que mostra o dossiê “Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA”, conduzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), em parceria com a Ação Educativa e o Instituto Paulo Freire. O relatório foi encomendado pelo Movimento pela Base.
Conforme o levantamento lançado em 2022, nos últimos anos caíram drasticamente os investimentos na EJA. Em 2012, foi destinado quase R$ 1,5 bilhão em recursos para essa área, sendo que o investimento caiu para cerca de R$ 40 milhões em 2022. Ou seja, há dois anos, foi investido o equivalente a 3% do que era destinado uma década antes. Os dados também indicam os gastos específicos para o apoio à alfabetização e educação de jovens e adultos. Foram destinados R$ 342 milhões para essa finalidade em 2012 e R$ 5,5 milhões em 2021. As informações foram obtidas por meio do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop).
– Hoje, no Brasil, fazemos a escolha de financiar a educação básica principalmente para quem está na idade certa. Os valores que vão para a EJA são muito baixos. Isso significa que, conforme a população jovem vai envelhecendo, as taxas de analfabetismo vão melhorando. A tendência é termos um envelhecimento de uma população mais educada, e não uma melhoria das políticas para educação de adultos – diz Tássia.
Também vem caindo o número de matrículas. De acordo com o dossiê, entre 2017 e 2021, quando o investimento federal da EJA já estava em níveis mínimos, houve uma queda expressiva das matrículas no Rio Grande do Sul: 48%. Todos os Estados brasileiros tiveram queda no período, com exceção de Alagoas, que teve crescimento de 20% nas matrículas.
Considerando a Região Sul, no mesmo período, o número de alunos matriculados caiu de 418,2 mil para 257,4 mil. Os dados são do Censo Escolar do Inep. O estudo também aponta que a oferta de cursos na modalidade está concentrada nas redes públicas, em todo o país.
Levando em consideração as 31 escolas da rede municipal de Porto Alegre que ofertam EJA, com 240 turmas de alfabetização, foram registradas 4,5 mil matrículas em abril de 2023 na modalidade. Em abril de 2024, foram cerca de 3,8 mil. Conforme a Secretaria Municipal de Educação, a expectativa é aumentar o número no segundo semestre, que costuma ser mais movimentado. Os estudantes podem fazer matrícula na EJA a qualquer momento do ano, por isso o número de alunos é considerado flutuante.
O Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores (CMET) Paulo Freire, no bairro Santana, é um dos maiores e mais tradicionais da Capital. Segundo o diretor, Paulo André Passos de Mattos, antes da pandemia, eram 1,2 mil estudantes por ano. Agora, são registrados pouco mais da metade – em torno de 700 alunos por ano. Em 2024, a escola completa 35 anos, sendo que conta com turmas de alfabetização desde o início de sua história.
– O currículo é totalmente adaptado a esse público. A primeira coisa que a gente faz é conhecer os alunos, ouvir suas trajetórias, e trabalhamos a partir do que eles nos trazem. Por exemplo, a gente seleciona uma palavra que eles conhecem, ligada ao cotidiano deles, e a constrói de diversas maneiras. Depois a gente formula frases com essa palavra, aí um texto, e então o lemos. Nós lemos muito, levamos eles à biblioteca, a museus. A gente aproxima o universo letrado deles – explica a psicopedagoga Valeska da Silva Brum, que atua no CMET Paulo Freire.
A instituição hoje conta com alunos de perfis variados, incluindo pessoas idosas que decidiram estudar depois de se aposentar e jovens que não conseguiram concluir o Ensino Fundamental na idade certa. A instituição foi criada com o objetivo de atender ao público trabalhador, por isso, oferta atividades de qualificação profissional, como informática para o mercado de trabalho, bem como oficinas culturais de instrumentos e teoria musical.
– Não tive infância, comecei a trabalhar aos sete anos na casa de uma família. Eu sofri muito com meu pai, que era alcoolista. Então, não tive o prazer de estudar. Comecei a estudar para aprender, quero me formar para ser mais tarde enfermeira ou até médica, é meu sonho. Agora criei coragem e estou começando do zero. Eu até os 90 anos quero estar com o diploma na mão – relata a cuidadora de idosos Adriana Rossi, que tem 55 anos e faz o curso no CMET Paulo Freire desde julho do ano passado.
Para Daniel da Silva Rodrigues, 22 anos, que está começando o Ensino Fundamental na Emef Max Oderich, em Canoas, e trabalha com serviços gerais, outra preocupação é garantir uma boa educação para o filho.
– Comecei a estudar em março, por causa do meu trabalho, para melhorar no dia a dia. Sendo na leitura ou nas contas, estou melhorando cada vez mais. Quero melhorar para o dia a dia, para conseguir um serviço melhor e para a minha família também, para conseguir educar melhor meu filho. Vou terminar o curso, se Deus quiser – afirma o jovem.
Também é o caso do motorista de caminhão Geovane de Oliveira, 45 anos, que começou em fevereiro o curso em Canoas. Ele não sabe ler e escrever, porque deixou a escola para trabalhar numa lavoura, mas diz que não deixa seu filho de 10 anos fora da escola:
– O futuro vai exigir dele a educação, não deixo ele sem estudar, de jeito nenhum.
A Emef Max Oderich conta com 140 alunos na EJA, sendo que 20 deles estão em turmas de alfabetização. A instituição atende principalmente aos moradores dos bairros Harmonia e Mathias Velho, conhecidos pela violência e pela vulnerabilidade.
– A alfabetização tem um diferencial em relação às outras etapas. Temos jovens trabalhadores, mas também pessoas mais velhas que querem socializar, que vieram buscar sonhos que deixaram para trás. Isso nos deixa muito felizes, é uma atmosfera positiva que se cria dentro da escola – diz o diretor, Alvarez da Silva.
Canoas conta com 13 escolas que ofertam a modalidade, sendo quatro delas com turmas de alfabetização e pós-alfabetização. Após um esforço de divulgação nos últimos meses, o município está com turmas de EJA lotadas, conforme Mariáh Oyarzabal Luz, gestora da modalidade na Secretaria Municipal de Educação.
– A alfabetização é um poderoso instrumento de inclusão social. À medida que temos adultos educados e alfabetizados, eles vão valorizar mais a educação, vão incentivar seus filhos a permanecerem na escola e reverter um ciclo pouco virtuoso, que acontece quando temos famílias com pais que não foram escolarizados. Muitas vezes, eles não enxergam valor agregado na educação. Garantir a alfabetização desses adultos gera a oportunidade de reverter esse ciclo – complementa João Paulo.
Segundo Patrícia Camini, professora da Faculdade de Educação da UFRGS, um dos grandes problemas no que se refere ao combate ao analfabetismo é a escassez de políticas públicas permanentes e contínuas, e o fracasso das metas do último PNE demonstra isso.
– Ainda estamos aprendendo a planejar a educação a longo prazo, porque entra e sai governo e as políticas vão sendo descontinuadas. Uma das principais políticas com foco em alfabetização surgiu em 2013, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, que abarcou todos os professores das redes públicas. Depois, surgiu a Política Nacional de Alfabetização, mas houve descontinuidade entre essas duas iniciativas, junto à crise política do país – explica.
Com a pandemia, o aprofundamento das desigualdades e o empobrecimento das famílias, esses problemas se agravaram. Instituída em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro, a Política Nacional de Alfabetização foi revogada no ano passado, com a criação do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
– A resposta à pandemia foi muito lenta e desorganizada. As escolas ficaram dependendo das prefeituras, os professores tiveram que fazer muita coisa sozinhos. E a resposta para as crianças precisa ser muito rápida, cada ano conta muito. No momento, o governo está ouvindo os alfabetizadores, repactuando a escuta com as universidades. Estamos em um momento de reestruturação das políticas nacionais de alfabetização – ressalta Patrícia.
Para a professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tássia Cruz, além de resolver as carências do ensino regular, é necessário garantir ensino de qualidade para adultos que não foram alfabetizados na idade certa.
– Um passo importante, mas menos prioritário nas atuais pautas educacionais, é dar outras formas de acesso à educação para pessoas que saíram do sistema educacional e ainda estão no mercado de trabalho. E até mesmo para aqueles que já saíram do mercado de trabalho, mas merecem ter dignidade, no sentido de conseguirem transitar na língua formal e serem cidadãos plenos – destaca.