Censurado pela 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), da região de Santa Cruz do Sul, e depois devolvido às prateleiras escolares por determinação da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, integra o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) do governo federal. O título aborda temas como racismo, violência policial e a relação entre pais e filhos, e foi o vencedor do Prêmio Jabuti 2021, na categoria “Romance Literário”.
A iniciativa de distribuição de obras para escolas públicas – uma das maiores do mundo – envolve uma série de etapas para a construção de seu acervo, reúne centenas de pareceres de especialistas e tem como critérios qualidade do texto, adequação à faixa etária, projeto gráfico-editorial e qualidade dos materiais digitais.
Em 2024, quase 200 milhões de livros e materiais didáticos foram entregues a instituições de ensino de todo o Brasil por meio do PNLD. A aquisição de obras literárias é menos frequente – aconteceu pela última vez no ano passado, quando 28,5 milhões de exemplares foram comprados para as etapas dos Anos Finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio.
Para escolher os títulos que irão compor o acervo do programa, o governo federal publica um edital de convocação, no qual são descritos que tipos de obras serão aceitos. Nele, editoras interessadas se inscrevem e fazem propostas de obras a serem incluídas na lista. A partir daí, é feita uma triagem dos requisitos técnicos dos exemplares, na qual são avaliadas questões como capa, tamanho e tipo de letra e paginação.
É um processo sério e rigoroso, com pareceristas do Brasil inteiro de diferentes áreas, como universidades e escolas. Cada obra passa por dois pareceristas. Se eles divergem, um terceiro parecerista faz a avaliação.
ANTONIO MARCOS VIEIRA SANSEVERINO
Professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Os que passam por esse filtro são encaminhados a avaliadores do conteúdo em si, que verificam a qualidade do texto e se aquele conteúdo é adequado para a faixa etária para a qual foi feita a inscrição, por exemplo. No “PNLD 2021 Literário - Ensino Médio”, que incluiu O Avesso da Pele, 190 pessoas trabalharam como avaliadoras.
— É um processo sério e rigoroso, com pareceristas do Brasil inteiro de diferentes áreas, como universidades e escolas. Cada obra passa por dois pareceristas. Se eles divergem, um terceiro parecerista faz a avaliação — explica Antonio Marcos Vieira Sanseverino, professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na portaria de 2022 que acrescentou o livro de Jeferson Tenório no acervo do PNLD, 531 títulos foram aprovados e 135 foram reprovados, entre eles, clássicos como Sherlock Holmes e Robinson Crusoé. Foram levados em conta os seguintes critérios:
- Qualidade do texto e adequação ao gênero literário
- Adequação temática no âmbito do ensino médio
- Projeto gráfico-editorial e paratexto
- Qualidade dos materiais digitais
O edital que precedeu essa portaria informava que seriam priorizados livros com temas como projeto de vida, inquietações da juventude, o jovem no mundo do trabalho, a vulnerabilidade dos jovens, cultura digital no cotidiano do jovem, bullying e respeito à diferença, protagonismo juvenil, cidadania, diálogos com a sociologia e a antropologia, ficção e mistério e fantasia. Havia margem, contudo, que se abordassem outros temas, desde que nomeados, definidos e justificados.
O acervo é apresentado às escolas públicas brasileiras, que fazem, então, a escolha das obras que irão utilizar naquele ano. Apenas após a compilação dos dados referentes aos pedidos realizados pelas instituições, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) negocia os valores junto às editoras.
A bibliotecária escolar Gislene Sapata Rodrigues destaca que o trabalho pedagógico sempre perpassa a escolha das obras, e que o professor fará a mediação daqueles conteúdos para os seus alunos.
— O Avesso da Pele, embora tenha algumas cenas com um conteúdo de caráter sexual, não é só isso. Ele é uma obra muito mais profunda, porque desmascara a questão do racismo, inclusive o racismo cotidiano e o estrutural, pela narrativa que o Jeferson Tenório traça. Por isso, vejo muito mais contribuições desse livro do que algo que negativo que possa ficar para o adolescente — pontua Gislene.
Sanseverino disse não saber se há, de fato, alguma temática inadequada para alunos do Ensino Médio – o que precisa ser discutida é a pertinência daquela leitura na formação de alguém.
— A inadequação me parece ter mais a ver com o grau de acessibilidade daquela obra. Um romance experimental dado para o 1º ano do Ensino Médio, por exemplo, pode mais afastar uma pessoa da leitura do que aproximar. O ponto é partir dessa experiência primeira que o leitor tem para, daí, expandir. A chave é ver a literatura como algo que envolve o leitor, para formar alguém que se mantenha como leitor fora da escola — observa o docente.
Entenda o caso
Cerca de 200 exemplares de O Avesso da Pele chegaram à Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira em dezembro de 2023, com a finalidade de serem trabalhados em sala de aula. Ao perceber que algumas páginas da obra continham palavras que definem órgãos sexuais e se referem a relações íntimas, a diretora da instituição, Janaina Venzon, se revoltou e publicou, na sexta-feira (1°), vídeo em que critica o "vocabulário de tão baixo nível" da obra. Na postagem, também pediu que o Ministério da Educação buscasse os exemplares enviados à escola.
Janaina diz ter recebido orientação do titular da 6ª Coordenadoria Regional de Educação, Luiz Ricardo Pinho de Moura, para recolher os livros da biblioteca da instituição e os manter sob seus cuidados até “segunda ordem”, o que consta em um ofício mostrado pela diretora a GZH.
A Seduc, contudo, negou que tenha havido qualquer orientação da coordenadoria regional para recolher os livros. "Os livros não foram retirados e não houve nenhuma orientação da Coordenadoria Regional para nenhum recolhimento", respondeu à reportagem de GZH. A pasta também reiterou que a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas. Acionado pela reportagem de GZH, Moura disse que não poderia conversar e que o assunto seria tratado pela Seduc.
Nascido no Rio de Janeiro, Jeferson Tenório é radicado em Porto Alegre e estreou na literatura com O beijo na parede (2013), eleito livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Ele também é autor de Estela sem Deus (2018) e O avesso da pele (2020), que venceu o Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance Literário. Tenório foi patrono da Feira do Livro de Porto Alegre em 2020, o mais jovem escritor e o primeiro negro escolhido para o posto. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol.