A aprovação do texto-base do Projeto de Lei (PL) 3179/12, que autoriza o ensino domiciliar no Brasil, na quarta-feira (18), na Câmara dos Deputados, abre espaço para regulamentar o homeschooling, que já tinha sido aprovada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e chegou a ser considerada inconstitucional por ser competência do governo federal.
Nesta quinta-feira (19), os deputados federais ainda votam os destaques da matéria, que, depois, vai para apreciação do Senado.
Se na política não há consenso (na Câmara, foram 264 votos a favor, 144 contrários e duas abstenções), uma das promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro também passa longe de ser unanimidade entre entre profissionais tanto do ponto de vista da legislação quanto da perspectiva da educação.
Em março, a reportagem de GZH ouviu especialistas sobre a proposta. Um deles é o ex-procurador de Justiça e advogado Lenio Luiz Streck, que acredita que o ensino domiciliar fere a igualdade, já que não pode ser feito por todas as famílias, e transfere recursos indevidamente dentro da sociedade – isso porque as certificações e avaliações ainda teriam que ser de responsabilidade do Estado e, portanto, seriam pagas também pelas pessoas que não aderiram à modalidade, por meio dos impostos. Diante disso, considera a lei promulgada em Porto Alegre “absolutamente inconstitucional”.
— Se os pais têm direito de não levar seus filhos para o colégio, todos têm que ter esse direito. Mas a grande questão é que os pobres não podem fazer homeschooling. Se é só para os ricos, somente por isso já não se poderia fazer a lei, porque é uma lei que viola a igualdade entre as pessoas — defende.
A ideia de que avaliações podem comprovar que os estudantes estão atingindo os objetivos de aprendizagem também é um problema, porque desconsidera todo o contexto da educação, ressalta Andreia Mendes dos Santos, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do curso de Psicologia da PUCRS. Assim, ela aponta que a proposta do ensino domiciliar fere princípios da educação, como o que diz que o processo de aprendizagem é contínuo e se desenvolve no cotidiano, pelas experiências vivenciadas pelos alunos nas escolas, com os colegas, os conteúdos e as estratégias pedagógicas adotadas:
— Precisamos compreender o motivo de não levar a criança para a escola e optar por esse ensino domiciliar, e o quanto isso já carrega em si o estigma de que a educação é feita por qualquer um, de que não existe uma especificidade nesse fazer do professor e na proposta pedagógica.
A especialista também defende que as instituições de ensino têm um papel de socialização do indivíduo. Para ela, a função dos pais ou responsáveis é a do desenvolvimento, do cuidado e do afeto, enquanto o dever da escola refere-se às diferentes aprendizagens.
— O papel da escola também é social, porque é nesse ambiente que a criança acaba manifestando aquilo que não vai bem em sua vida, é onde aparece os primeiros sintomas de que há alguma dificuldade, de que alguma coisa está acontecendo. A escola também tem o papel de perceber que a criança está precisando de um cuidado maior de saúde, de assistência ou de segurança – diz.
Benefícios da prática
Licenciada em Pedagogia pela PUCRS e diretora pedagógica da Homeschool Annabel, que oferece complemento escolar e apoio educacional às famílias, Anna Hens argumenta que o homeschooling tem três principais benefícios: a personalização do ensino, a qualidade da educação e a participação da família no processo de aprendizagem. Ela afirma que, na escola, todos os alunos de uma turma aprendem o mesmo, enquanto nesta modalidade se trabalha, além da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), temas que vão além.
Em relação à qualidade, comenta que ensino direcionado para pequenos grupos gera uma aprendizagem mais significativa e um melhor desenvolvimento do aluno:
— Sabemos que cada um tem o seu jeito de aprender e isso tem que ser respeitado. Quando se faz o ensino doméstico, se consegue respeitar o ritmo de cada aluno e a sua forma de estudar e aprender. Além disso, a modalidade nos traz maior convivência e participação da família no ensino.
De acordo com a diretora pedagógica, no ensino doméstico, as famílias investem em outros espaços socializadores, como atividades extracurriculares sobre empreendedorismo, gastronomia, música, dança e esportes:
— A socialização é um passo importante e nenhuma família do ensino doméstico quer que seu filho não socialize, muitas só querem que seu filho não passe por sofrimentos.
Anna se diz a favor da liberdade educacional e defende que as crianças que não têm a escola como o melhor lugar para aprender podem ter outras opções dentro das possibilidades de suas famílias.
— Penso que, se vivemos em um Estado democrático, a liberdade é um direito de todos. Se a pessoa pode escolher o que é melhor para ela, por que uma família não pode ter a liberdade de fazer o que é melhor para o seu filho? Só temos um formato de escola e, se o aluno não se adapta à escola, ele é uma exceção da lei, daí tem afastamento e fobia escolar. Conheço casos em que a escola acabou sendo um excludente, ao invés de promover inclusão – relata.
No Congresso
Durante a quarta-feira (18), quando o texto-base foi apreciado pelos deputados, os políticos também se manifestaram contra ou favor do homeschooling.
Parlamentares contrários ao projeto alegaram que o homeschooling fragiliza a proteção de crianças, pois na avaliação deles, se tornaria mais difícil, por exemplo, protegê-las de abusos sexuais ou de exploração do trabalho infantil.
— É nas escolas que muitas vezes é possível identificar abusos — disse a líder do PSOL, deputada Sâmia Bomfim (SP).
A oposição também acusou o governo de criar "cortina de fumaça", ou seja, uma distração com a pauta ideológica, em meio à alta da inflação e do preço dos combustíveis.
Para o deputado Tiago Mitraud (MG), líder do Novo, contudo, o projeto chancela o "direito de liberdade" previsto na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
— Se têm famílias com condições de adotar isso, e vão ter regras para o homeschooling, não vamos ser nós que vamos votar contra — afirmou.