Em um recente congresso científico realizado nos Estados Unidos, a imunologista e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Cristina Bonorino provocou espanto em um colega americano. Logo depois de falar com um pesquisador de destaque radicado em Saint Louis, no Missouri, ela comentou:
– Foi meu aluno no Brasil.
Minutos depois, após cumprimentar outro especialista em ascensão, baseado em Boston, Massachusetts, Cristina, que é colunista de GZH, completou:
– Também foi meu aluno.
– Quase todo mundo aqui foi seu aluno, aparentemente. Aquele outro lá também? – brincou o cientista dos EUA.
Não foi uma coincidência improvável. Dos seis últimos estudantes que completaram a pós-graduação em Porto Alegre sob a orientação de Cristina, cinco já embarcaram rumo ao Exterior levando uma bagagem inestimável de conhecimento acumulado no Brasil, mas que vai beneficiar empresas e países estrangeiros.
Há cerca de três anos, segundo relatos de acadêmicos da área de ciência e tecnologia, o fenômeno há muito tempo batizado como “fuga de cérebros” disparou e atingiu um novo patamar em razão de fatores como queda de investimento, falta de vagas de alto nível nos setores público e privado e excesso de burocracia na rotina de professores universitários dedicados à pesquisa. O aprofundamento da migração de mestres e doutores, se não for estancado a tempo de evitar a perda de uma geração inteira de jovens promessas, ameaça deixar o Brasil sob um apagão científico que exigiria décadas para ser revertido.
Conforme a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), é difícil quantificar o tamanho dessa diáspora intelectual por não haver uma centralização desse tipo de dado. Ao mesmo tempo, é fácil observar o impacto da marcha de talentos em qualquer instituição de ensino nacional.
Um levantamento realizado pelo Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2019 revelou que nada menos do que 25% de 754 egressos em nível de graduação ou pós-graduação em Ciência ou Engenharia da Computação que responderam à pesquisa haviam deixado o país até aquele momento. Boa parte foi contratada por empresas de grande porte como Amazon, Facebook, Google, Intel ou Netflix, ou por universidades localizadas principalmente em EUA e Europa.
– Vemos com preocupação essa tendência crescente de fuga de cérebros, pois são profissionais formados com recursos públicos que deixam de contribuir diretamente com o crescimento do país. Por outro lado, não temos como impedir essas saídas – afirma o ex-coordenador do programa de Pós-Graduação em Computação na UFRGS e professor do Instituto de Informática João Comba.
A boa notícia é que ainda há tempo para implantar estratégias capazes de valorizar a produção científica e os profissionais brasileiros antes do colapso intelectual – e nem tudo depende somente de despejar mais dinheiro em laboratórios universitários, institutos de pesquisa ou empresas voltadas à inovação. Ações administrativas como aliviar a carga de burocracia imposta a pesquisadores, forçados a dividir seu tempo entre salas de aula, trabalho em laboratório e horas incontáveis preenchendo formulários, representaria um freio à corrida das melhores mentes do país para além das fronteiras.
Outros pontos de ancoragem para uma reação nacional são a existência de universidades e institutos de fomento de alto nível, fartura de publicações científicas de autores brasileiros (embora seja necessário aumentar o impacto delas, ou seja, o número de citações em outros artigos), recursos naturais favoráveis à pesquisa em áreas como biodiversidade e nichos de excelência, a exemplo do setor de saúde que une faculdades e hospitais de ponta em Porto Alegre.
Ou seja, há uma estrutura favorável à recuperação. E motivos para resolver essa equação não faltam: as estimativas variam, mas estudos sugerem que investimentos realizados no setor de ciência e tecnologia geram um retorno pelo menos seis a sete vezes maior – essa relação pode ser ainda mais vantajosa conforme a área específica. Conforme a SBPC, cada real aplicado na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por exemplo, é capaz de injetar R$ 12 na economia do país por meio de melhorias de produtividade no campo.
– Temos condições de superar esse momento conjuntural e mudar estruturalmente a ciência, a relação com o sistema produtivo e a economia. Temos potencialidades imensas no país. A biodiversidade é uma delas – assegura o presidente da SBPC, Ildeu Moreira (leia entrevista completa aqui).
A fórmula para tornar o Brasil outra vez atraente aos melhores profissionais disponíveis inclui alguns itens fundamentais: recuperação do nível de investimento em ciência, aumento do número e do valor das bolsas oferecidas a pesquisadores, redução na burocracia e estímulo à inovação nos setores público e privado. Falta colocá-la em prática.
Por que eles saem
Em uma palestra para empresários, há pouco mais de um ano, a professora do Instituto de Informática da UFRGS Luciana Buriol fez um apelo: que buscassem empregar em seus negócios os mestres e doutores de alta capacitação formados nas universidades brasileiras a fim de evitar que continuassem sumindo pela porta de embarque internacional dos aeroportos.
O apelo exercido por ofertas de emprego no Exterior, porém, fez com que a própria especialista em logística resolvesse deixar o país. Ela aguarda a concessão do visto de trabalho para iniciar seu contrato na gigante da tecnologia Amazon, nos EUA. O salário, 10 vezes superior ao que recebe como professora universitária no Brasil, é só um dos elementos da equação que resultou em sua iminente partida.
Hoje vivemos o pior momento que eu já vivenciei desde que comecei a fazer pesquisa. O que ocorre é que o Brasil retira o seu PIB basicamente de commodities (matérias-primas pouco industrializadas), não investe em ciência e tecnologia, e suas empresas não são tecnológicas.
CRISTINA BONORINO
Imunologista, pesquisadora da UFCSPA e colunista de GZH
– O Brasil é um país que investe massivamente em burocracia. Sou professora e pesquisadora. Se preciso comprar um computador a mais para meus alunos, tenho de fazer três orçamentos cheios de detalhes, ler editais enormes para poder gastar valores minúsculos, sempre com medo de infringir alguma linha do edital, depois instalar, fazer o registro patrimonial, ao mesmo tempo em que tenho de dar aula, orientar os alunos, fazer pesquisa, escrever artigos. Colegas de outros países perguntam como nós conseguimos dar conta – explica Luciana.
Em outros países, há secretários que auxiliam pesquisadores em tarefas de gerência, logística ou até questões acadêmicas mais simples como revisar a gramática de artigos escritos por orientandos. Além disso, enquanto brasileiros costumam dedicar de oito a 16 horas semanais à sala de aula, instituições como Stanford, nos EUA, têm média de quatro horas. O restante do tempo é investido sobretudo em projetos científicos.
Essa é uma mudança de fundo administrativo que teria impacto moderado nos cofres públicos. Outras medidas capazes de revigorar a ciência brasileira dependem de aportes mais vultosos. É preciso recompor o orçamento voltado à tecnologia. Somente as verbas destinadas às três principais fontes de fomento no país – Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – caíram de R$ 13,9 bilhões em 2015 para R$ 5 bilhões em 2020. No ano passado, dos R$ 5,2 bilhões previstos para o FNDCT, 90% foram contingenciados. As bolsas para mestrado e doutorado oferecidas pela União, congeladas desde 2013, pagam pouco para manter os intelectos mais brilhantes do país: R$ 1,5 mil e R$ 2,2 mil. O salário mínimo nacional, para comparação, é R$ 1,1 mil.
GZH entrou em contato com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, mas não obteve retorno.
Com poucos recursos, o número de bolsas para pós-graduandos e de concursos públicos para profissionais formados também cai. Os benefícios concedidos por Capes e CNPq, por exemplo, recuaram 14% em comparação com 2015.
– Hoje vivemos o pior momento que eu já vivenciei desde que comecei a fazer pesquisa. Estamos iguais há uns 30 anos. Mas, mesmo naquela época, tinha concurso público na área de ciência e tecnologia. O que ocorre é que o Brasil retira o seu PIB basicamente de commodities (matérias-primas pouco industrializadas), não investe em ciência e tecnologia, e suas empresas não são tecnológicas – observa Cristina Bonorino.
O problema é que, segundo a imunologista, ganhar R$ 1 bilhão vendendo boi é diferente de faturar o mesmo valor exportando produtos de alta sofisticação.
– Se tu crias um boi, ele vai crescer e pronto, termina ali. A tecnologia permite construir degraus cada vez mais sofisticados, tu abres novos mercados. A vacina de mRNA desenvolvida para combater o coronavírus é um exemplo. A vacina da Moderna teve 100% de investimento do governo americano – diz a professora gaúcha, fazendo referência a um novo padrão de imunizante desenvolvido durante a pandemia.
Notícias promissoras começam a surgir no horizonte. O Congresso proibiu que os recursos do FNDCT – uma das principais fontes de dinheiro para pesquisa no país – sejam retidos ou desviados daqui para frente. Porém, os cientistas ainda fazem pressão para que a mudança na lei seja contemplada já para o orçamento de 2021.
Essa alteração é capaz de injetar R$ 5 bilhões ao setor anualmente – um dos sinais mais promissores de uma possível retomada da ciência brasileira nos últimos anos.
A busca por talentos
A procura de empresas e universidades estrangeiras por profissionais de alto nível formando-se no Brasil cria situações curiosas como a do engenheiro Carlos Eduardo Duarte, 44 anos, que emigrou para a Holanda em fevereiro do ano passado. Somente na cidade onde ele passou a morar, Eidhoven, há oito ex-colegas com quem trabalhava no Rio Grande do Sul. A busca ativa feita por headhunters estrangeiros (responsáveis por selecionar pessoas com perfil adequado para uma determinada vaga em diferentes lugares do mundo) atrás de especialistas com perfil semelhante acaba facilitando, por exemplo, a criação de microcomunidades de expatriados.
– A empresa de headhunters primeiro achou um, depois foi puxando os outros. Hoje tem uns oito ex-colegas de empresa no Brasil morando na mesma cidade que eu. Mas, ao todo, tenho uns 50 conhecidos brasileiros que estão trabalhando fora do Brasil – diz Duarte, especialista em engenharia de software.
A tecnologia e as redes sociais facilitam essa procura pelas melhores mentes mundo afora. Os caçadores de talento o localizaram pela plataforma LinkedIn, realizaram uma entrevista por Skype e fecharam o contrato ainda do além-mar. As carreiras buscadas para trabalhar fora variam bastante, mas geralmente envolvem áreas de ponta, desde informática até biotecnologia.
O país perde enormemente ao formar um profissional de alta qualificação, que estuda com bolsa do CNPq em instituições públicas e tem um potencial imenso e é entregue para outro país. Isso é uma burrice monumental.
ILDEU MOREIRA
Presidente da SBPC
O engenheiro começou a cogitar uma transferência internacional em 2017, quando passou a ver um número crescente de pessoas sendo demitidas e empresas encolhendo do dia para a noite em todo o Brasil. Enquanto isso, na Europa, os governos seguiam oferecendo vantagens para facilitar a atração de estrangeiros promissores como o abatimento na cobrança de Imposto de Renda por um período.
– A ideia é ficar uns três anos fora e depois reavaliar a situação – explica o engenheiro.
Cristina Bonorino acredita que a perda de profissionais só será estancada de fato quando o país apostar no investimento vultoso de recursos em ciência ao longo de vários anos e criar um ambiente favorável para a proliferação de empresas de tecnologia de médio e grande porte:
– No Brasil, as empresas farmacêuticas, por exemplo, não investem em inovação. Só sabem fazer genéricos. Agora está vindo essa nova tecnologia de vacinas de mRNA (desenvolvidas para combater a covid-19), toda uma terapia gênica que vem atrás disso. Nós precisamos de biotecnologia no Brasil e não temos recurso para isso – lamenta a cientista.
Pelo menos, a produção de novos talentos nacionais segue firme. Em fevereiro, a filha de Cristina, Julia Bondar, 24 anos, recém-formada em Medicina, recebeu um prêmio da SBPC por um trabalho de pesquisa envolvendo depressão.
Cristina, porém, não pôde estar ao lado da filha durante a entrega da distinção. Julia seguiu o caminho de muitos outros brasileiros e já está morando nos EUA, onde atua prestando consultoria a uma startup voltada à área da saúde.