À frente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o doutor em Física Ildeu Moreira atua nas áreas de física teórica e história da ciência no Brasil. Para o especialista, o país vive um momento difícil com a perda de recursos e profissionais de excelência (leia reportagem sobre o tema aqui). Mas acredita que há plenas condições para uma retomada. Veja trechos da entrevista concedida por telefone a GZH.
Profissionais e pesquisadores qualificados sempre saíram do Brasil para estudar ou trabalhar fora, mas agora parece haver um novo fenômeno, com mais gente deixando o país. Há de fato características novas?
A ida e vinda de profissionais da ciência entre países é normal. Mas isso está acontecendo agora em escala preocupante com a saída de muitos pesquisadores do Brasil. Não temos dados mais precisos porque é difícil se mensurar diretamente. Mas estamos perdendo, além de pesquisadores já consolidados, muitos jovens que vão fazer pós-graduação no Exterior e não retornam. Gostariam até de voltar ao Brasil, mas as oportunidades estão muito restritas. E já há também, lamentavelmente, pesquisadores indo para o Exterior devido a perseguições ou cerceamentos a suas atividades.
De que oportunidades o senhor fala?
Não estamos abrindo espaços suficientes de trabalho para jovens que estão se formando com alta qualificação. Temos pouquíssimos concursos nas instituições públicas, além da redução de recursos para manutenção e expansão de laboratórios. O Ministério da Ciência e da Tecnologia não abre vaga em institutos de pesquisa há uns oito anos. Muitos institutos estão com seu estafe reduzido, sem renovação. Nas universidades, as restrições também estão muito maiores nos últimos anos. Em relação às indústrias, o peso delas têm caído na nossa economia e há poucas iniciativas de inovação e poucos profissionais de ciência e tecnologia absorvidos por elas. As estatais, que também empregavam esses profissionais, estão com redução grande.
Esse cenário é mais circunstancial, pelo fato de o país estar enfrentando uma crise econômica, ou há fatores estruturais e de estratégia?
As duas coisas. O Brasil teve espasmos de desenvolvimento científico e tecnológico em alguns momentos. No início dos anos 1950 foram criados CNPq, Capes e alguns institutos nacionais de pesquisa. Iniciou-se uma política científica. Na época da ditadura, houve um impulso para a expansão da área nuclear, foi criado o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que agora estamos lutando para que não seja contingenciado, e também se criou a Embrapa. Com a redemocratização, tivemos a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia, se tentou organizar um pouco mais o Sistema Nacional de Ciência & Tecnologia. Depois, nos anos 1990, houve um decréscimo significativo no volume de recursos. Isso levou muita gente a buscar o Exterior. No início dos anos 2000, com mais recursos, se criaram os fundos setoriais (em 1999), a pós-graduação se expandiu muito, surgiram novos campi de universidades, institutos federais e instituições de pesquisa. Com isso a pesquisa produzida e a formação de mestres e doutores se expandiu. Isso ocorreu até por volta de 2015, quando começou a declinar.
E agora?
Houve uma desarticulação do sistema, que estava em processo ascendente, embora ainda com deficiências, como a interação frágil das instituições de pesquisa com o sistema produtivo e com a gestão pública, o excesso de burocracia, a baixa capacidade de inovação, tudo isso resultado também da ausência de políticas públicas adequadas, de uma visão econômica estreita e da predominância de uma mentalidade empresarial baseada apenas na exploração imediata de riquezas e na produção de commodities, em vez de se apostar no risco e na inovação. Conseguimos elaborar e aprovar, depois de 10 anos, um Marco Legal da Ciência, Tecnologia & Inovação, mas que ainda patina. Mas, nos últimos anos, houve uma pisada no freio violenta, com redução drástica de recursos em todas as agências federais de fomento e, também, nas fundações estaduais de amparo à pesquisa. Ao mesmo tempo, EUA, União Europeia e China estão aumentando significativamente os recursos aplicados em pesquisa e inovação.
O investimento em ciência não dá um retorno necessariamente imediato. Mas ele é fundamental. O mundo desenvolvido sabe bem disso.
Muitas pessoas aceitam a redução de verbas para a ciências por entender que há gastos mais urgentes. O que se perde com os cortes e com a perda de profissionais que o país tanto se esforça para formar?
Pessoas aceitam especialmente em governos e parlamentos, mas não a maioria expressiva dos brasileiros que, em todas as pesquisas que fizemos, afirmam que tais recursos deveriam aumentar. O país perde enormemente ao formar um profissional de alta qualificação, que estuda com bolsa do CNPq em instituições públicas e tem um potencial imenso e é entregue para outro país. Isso é uma burrice monumental. O investimento em ciência não dá um retorno necessariamente imediato, em particular na pesquisa básica. Mas ele é fundamental. O mundo desenvolvido sabe bem disso.
Se não desenvolve tecnologia, resta comprá-la a um custo mais alto?
Tem de comprar. A pandemia mostra isso: o Brasil teve de importar vacinas e insumos, que nós teríamos condições de desenvolver aqui, mas que precisamos adquirir da China e da Índia. É claro que, quando você fala com uma pessoa que está desempregada, que não tem dinheiro para dar comida aos filhos, ela vai dizer que o apoio do governo à sua sobrevivência é mais urgente, e para ela é mesmo. Mas não significa que ciência e tecnologia não sejam urgentes também, porque ciência e tecnologia vão ajudar no processo de construção econômica e social dos próximos anos. Se a gente não se preparar agora, quando vierem outras pandemias ou situações de crise, por exemplo, com as mudanças climáticas, isso vai se repetir.
Algum país consegue se desenvolver plenamente sem investimento em ciência, tecnologia e inovação, contando apenas com a produção agrícola, por exemplo, ou em um momento bate em um teto?
Bate no teto. E as pessoas não se dão conta de que o agronegócio envolve muita ciência. A ocupação do cerrado para a plantação de soja foi possibilitada pela ciência e a tecnologia. Antes, as pessoas achavam que aquela área só servia para queimar as árvores e obter carvão. Foi o trabalho da Embrapa, de universidades e de várias instituições que permitiu desenvolver aqui a agricultura tropical mais avançada do mundo. A mesma coisa com o petróleo: há 30, 40 anos, ninguém sabia o que era o pré-sal. Cientistas, engenheiros e técnicos apostaram na investigação e na exploração do fundo do mar. Desenvolveram uma extraordinária tecnologia, uma das mais avançadas do mundo, e isso resultou em 55% do petróleo brasileiro atualmente.
Se fosse resumir a situação desse setor no país hoje, como definiria?
Não digo desesperadora porque dá ideia de que devemos ou vamos arrancar os cabelos. A situação é crítica. Mas podemos revertê-la. A sociedade brasileira deve ter consciência disso. E agir com firmeza. Temos potencialidades imensas no país, a biodiversidade é uma delas, mas para isso precisamos de políticas públicas adequadas e continuadas na área.
Se o senhor fosse elencar medidas objetivas capazes de reverter o cenário difícil da ciência no Brasil neste momento, quais seriam as prioritárias?
Neste momento, a prioridade tem de ser estancar o corte drástico de recursos. Lembro que a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o chamado teto de gastos, que vale até 2036, leva a uma diminuição constante dos investimentos em políticas sociais, aí incluídas educação, saúde, ciência e tecnologia. É uma visão estreita que ameaça o país no seu desenvolvimento social e econômico e coloca em causa até a nossa soberania. Em um primeiro momento, precisamos garantir a sobrevivência do sistema. Do contrário, nossos jovens não vão ter oportunidades de trabalho em ciência e tecnologia e irão embora.
E depois?
Um dos passos seguintes é melhorar a educação básica, em particular a educação em ciências. O ensino de matemática e português na nossa educação básica é muito ruim no geral, e de ciências pode-se dizer o mesmo, com algumas exceções relevantes. Outro passo importante: diminuir a burocracia, um empecilho enorme para a ciência e a inovação no Brasil.
O senhor vê espaço para esses avanços no atual governo?
Em geral, em nosso papel como sociedade científica apartidária, somos quase sempre críticos dos governos porque cobramos políticas públicas e investimentos em educação, ciência, tecnologia e inovação. Desde a década de 1940, quando a SBPC foi criada, passamos por dificuldades, sempre exercendo essa tarefa crítica junto aos governos. Alguns foram mais progressistas, mas nossa postura crítica se manteve, com maior ou menor intensidade. Agora estamos fazendo críticas mais duras porque o processo de desmonte, de negacionismo e de desvalorização da ciência atingiu um grau muito preocupante. Estamos, por isso, protestando junto ao governo e ao Congresso, que têm sua cota de responsabilidade. Como já protestamos em outros momentos, inclusive de ditadura, vamos continuar a fazê-lo diante de qualquer governo que não leve em conta adequadamente a ciência e a educação.