Um estudo sobre a judicialização da educação básica no Brasil mostra que as principais causas de ações na Justiça são a busca por vagas em creches e a permissão para o ingresso no Ensino Fundamental de crianças com idade inferior ao determinado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). O estudo foi feito pela advogada Alessandra Gotti, doutora e mestre em Direito Constitucional, a pedido do CNE e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Segundo a especialista, a matrícula de crianças em creches e pré-escolas nas redes municipais de educação está no topo do ranking da judicialização. O assunto é objeto de demandas judiciais crescentes, ajuizadas especialmente por parte dos ministérios públicos estaduais, defensorias públicas e pelas próprias famílias em nome das crianças.
Em relação às ações sobre os limites etários para o acesso às etapas da educação, as demandas mais frequentes se referem ao corte de idade para matrícula inicial na escola e no primeiro ano do Ensino Fundamental. Atualmente, uma resolução do CNE exige que a criança tenha seis anos completos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula para ingresso no primeiro ano do Ensino Fundamental e quatro anos completos para ingresso na pré-escola. Essa determinação vem sendo questionada, principalmente pelas famílias, em diversas ações judiciais.
Outro tema que tem sido amplamente judicializado é a matrícula e frequência de menores de 15 anos no Ensino Fundamental e menores de 18 anos no Ensino Médio em cursos e exames supletivos na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), conhecidos como cursos supletivos.
O oferecimento de atendimento em creches e pré-escolas em período ininterrupto durante o recesso escolar também tem sido objeto de ações civis públicas propostas, sobretudo, pelas defensoria públicas e pelos MPs em vários municípios.
A judicialização na educação é o tema abordado na publicação Reflexões sobre Justiça e Educação, que foi lançado na quarta-feira (18) na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, pelo movimento Todos Pela Educação e a Editora Moderna. Além da autora do estudo, especialistas do setor de educação abordam seus pontos de vista e apontam soluções para o assunto.
Recomendações
Uma das recomendações da especialista para reduzir a litigância em torno desses temas é a criação de um canal de diálogo mais eficiente entre o sistema de Justiça e o campo educacional, para possibilitar que o apoio técnico de especialistas possa subsidiar os magistrados em suas decisões.
— Muitas vezes, a decisão técnica e jurídica não alcança o impacto pedagógico do processo educacional de uma determinada questão. Por isso, é fundamental que exista esse espaço de diálogo inclusive para garantir apoio técnico para subsidiar os magistrados nesse tipo de decisão — comenta Alessandra.
A presidente executiva do movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz, também defende a necessidade do apoio de especialistas para subsidiar as decisões do Judiciário:
— O sistema de Justiça precisa se valer do apoio de pessoas que entendem o dia a dia da sala de aula, porque muitas vezes as decisões do Judiciário acabam afetando uma ponta que está muito distante da realidade deles. E com certeza eles acham que estão ajudando e defendendo a educação, mas podem prejudicar o sistema educacional como um todo e o planejamento e a implementação das políticas por parte do Executivo.
O estudo também recomenda que o CNE atue mais fortemente junto ao Poder Judiciário, ao Poder Legislativo e às Cortes de Contas. Segundo Alessandra, o CNE deve fazer pressão para que sejam julgadas ações que resolvam em definitivo pendências como a questão do corte etário. Atualmente, está em análise no Supremo Tribunal Federal uma Ação Declaratória de Constitucionalidade sobre a idade limite para o ingresso no Ensino Fundamental.
Gestão pública
Na publicação, o presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Eduardo Deschamps, aponta em seu artigo que a frequente judicialização de questões relativas à educação faz com que o gestor público não consiga executar projetos conforme estabelecido no planejamento e na organização orçamentária.
“Com frequência, é preciso deslocar um imenso esforço para a discussão e o cumprimento das decisões judiciais (com frequência de forma liminar), minando a capacidade executiva da administração. Além disso, muitas vezes as decisões judiciais focam mais em direitos individuais do que em direitos coletivos, resultando em potenciais prejuízos para um grande grupo de cidadãos em detrimento de alguns poucos”, diz Deschamps, que também é secretário de Educação de Santa Catarina.
Esse problema também é abordado pelo sociólogo Cesar Callegari, conselheiro do CNE. Segundo ele, a atuação do Poder Judiciário pode provocar um grande impacto no planejamento e na execução da política pública de educação, interferindo inclusive nas filas de espera que são adotadas para atender a população.
“Muito embora o mandado judicial vise a assegurar o direito da criança demandante, ele gera um efeito colateral que não pode ser desconsiderado ao se analisar o fenômeno da judicialização: matrículas realizadas por decisão judicial alteram a ordem cronológica das filas de espera que são normalmente adotadas pelas municipalidades para encaminhar o atendimento. Assim, essas decisões judiciais geram, na prática, o efeito de que as filas de espera formalmente constituídas sejam literalmente fragilizadas e desmoralizadas”, aponta Callegari.
Garantia constitucional
No prefácio da publicação, o vice-presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, defende que a educação precisa ser um direito realizado. Ele lembra que as decisões judiciais podem ser usadas para garantir o nível do ensino garantido constitucionalmente.
“Cabe sempre ao Poder Judiciário analisar a legalidade do ato administrativo quando o ente político descumprir os encargos político-jurídicos que sobre ele incidem, comprometendo, assim, com sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais assegurados pela Constituição Federal”, diz Toffoli, lembrando que ele mesmo já ressaltou em suas decisões no STF que a educação é direito fundamental do cidadão, e deve não apenas ser preservada mas também fomentada pelo Poder Público e pela sociedade.