O primo é o filho da tia ou do tio, certo? Não se estivermos falando de matemática. E talvez seja a falta dessa compreensão, de que estamos sob outro universo de linguagem, que tem levado os estudantes do Rio Grande do Sul – e do Brasil também – a desempenhos tão ruins na disciplina.
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93% dos alunos de 1º ano do EM estão abaixo do nível adequado em matemática
Dados do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul (Saers) de 2016 demonstraram que 93% dos alunos de 1º ano do Ensino Médio de escolas públicas estão abaixo do nível adequado em matemática. A avaliação aplica provas para aferir a aptidão dos alunos em leitura, escrita e números. Podem participar tanto instituições públicas quanto privadas.
Professores e pesquisadores acreditam que os maus resultados não sejam uma equação simples, em que somente a dificuldade de calcular esteja em jogo. Katia Stocco Smole, doutora em educação matemática e diretora do Grupo Mathema, que há 20 anos pesquisa e desenvolve métodos pedagógicos para melhorar a qualidade do ensino da matemática, entende que um dos pontos que podem explicar esse desempenho é a carência de "alfabetização matemática", uma espécie de imersão dos estudantes, desde o início da vida escolar, nos termos, códigos e sinais que garantem o entendimento desses conteúdos.
Esse desafio, acrescenta Katia, exige melhor formação dos professores, que atualmente saem das faculdades sem o conhecimento e as ferramentas básicas para ensinar adequadamente e, para piorar, encontram uma rede de educação deficiente e pouquíssimo incentivo ao aperfeiçoamento.
– Fora da escola, o tempo de exposição dos alunos a essa linguagem é ainda menor. Então, o professor precisa pensar que, à frente dele, está uma pessoa (o aluno) que não é usuária dessa língua e precisa trabalhá-la na sala de aula, sentir-se um alfabetizador dessa linguagem – ressalta.
Mas não se trata de uma missão delegada somente à escola. A família, explica a especialista, não incentiva o contato com a linguagem matemática e isso poderia ser feito por meio de jogos e brincadeiras que aproximem as crianças do universo dos números enquanto se divertem.
– A gente sabe que a matemática não é assunto no churrasco de domingo. mas podemos tratar a álgebra, por exemplo, como tratamos o inglês – diz katia, comparando a importância que damos ao aprendizado da língua inglesa.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da UFRGS, Elisabete Burigo chama a atenção para outro ponto que pode ajudar a explicar o desempenho pífio nas provas: as questões apresentadas se distanciam da realidade dos alunos, e os problemas em aula não "conversam" com o cotidiano dos estudantes, que acabam se vendo em apuros para interpretá-los. Provavelmente por isso, avalia a professora, tornam-se desinteressantes e pouco desafiadores.
– Eles aprendem que têm de dar um número como resposta, mas não participam da construção do problema em si. Assim, não enxergam aquilo como algo que mereça ser analisado – avalia.
Elisabete sugere que as escolas apostem em atividades mais dinâmicas, em que as turmas possam aprender a redigir problemas a partir de situações que estejam presentes na realidade em que vivem. Professora de matemática do Ensino Médio na Rede Marista, Ana Elisa Dalpizol percebe que o hábito de exercitar o raciocínio matemático é pouco estimulado nos alunos em todos os níveis e mesmo que o professor tenha todo o empenho em aproximá-los do tema, depara com as deficiências que se arrastam de um ano a outro.
– Sem o conhecimento básico, a gente não arranca no conteúdo. Estamos sempre voltando para trás para suprir essa defasagem – conta.– Muitos estudantes têm o primeiro contato com a resolução de exercícios no momento da avaliação, e na matemática, a realização de exercícios é de grande importância, pois assim se pode diagnosticar onde estão as dificuldades a tempo de saná-las. Trabalhar com o erro faz parte da aprendizagem também.
Em busca de modelos de ensino mais atrativos
Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), entidade que realiza a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), compartilha da ideia de que a falta dessa conexão entre as atividades escolares e a vida prática dos alunos colabora para o cenário desolador que avaliações como o Saers apontam. Ele enumera países como Tailândia, Coreia do Norte e Finlândia para exemplificar como é necessária uma mudança radical na forma como a matemática é ensinada no Brasil. Nesses países, ações efetivas melhoraram o desempenho dos alunos.
– Ainda convivemos com práticas antigas e obsoletas, em que a posição do aluno é muito estática na sala de aula – diz.
O reflexo desta inércia frente aos resultados, explica Viana, pode ser percebido em todos os setores da sociedade. Negar aos estudantes um ensino de matemática qualificado e eficiente é também retirar deles o direito à cidadania. Esses conhecimentos comprometem o acesso ao mercado de trabalho e relegam nossos alunos das profissões apontadas como as mais bem-sucedidas da atualidade, parte expressiva delas ligada à tecnologia, que, por sua vez, tem tudo a ver com matemática.
– Há dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) que mostram que nem 4% dos alunos de 15 anos no Brasil têm a fluência de matemática exigida em profissões tecnológicas. Isso é triste – lamenta.
O Colégio Estadual Chico Anysio (Ceca), no Rio de Janeiro, conseguiu fugir dessa realidade revolucionando a forma de ensinar a partir de um projeto-piloto do Instituto Ayrton Senna em que o grupo Mathema foi parceiro no programa de matemática. A instituição adotou o modelo de educação integral em tempo integral. Mas não só isso.
Os alunos trabalham o aprendizado cognitivo (conteúdo das disciplinas obrigatórias como português, matemática, geografia, história etc.) de forma combinada com o desenvolvimento de competências socioemocionais, e os professores levam os estudantes a desenvolver, em sala de aula, colaboração, responsabilidade, criatividade, abertura para o novo, pensamento crítico e comunicação.
Essas competências da base comum são agrupadas por áreas de conhecimentos, levando os professores das áreas a trabalharem juntos. Os alunos mais responsáveis, focados e organizados, por exemplo, aprendem, em um ano letivo, cerca de um terço a mais de matemática do que os colegas que apresentam essas competências menos desenvolvidas.
Nessa proposta, há também aulas dedicadas à concepção e à execução de projetos pelo alunos, que trabalham sempre em times, estimulando a criação, a participação ativa e a colaboração entre eles. O colégio se destacou na rede pública estadual por ter alcançado altos níveis de aprendizagem. O número de estudantes com bons resultados em matemática foi 10 vezes maior do que nas outras escolas da rede. Em português, quatro vezes maior. Quase metade dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio foi aprovada em universidades públicas.
Recentemente, o MEC divulgou os resultados finais do Enem 2015, e o Ceca teve o melhor desempenho entre as escolas de igual nível socioeconômico (médio baixo) de todo o Estado do Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que o Ceca participou do Enem, pois foi a primeira turma formada integralmente nessa proposta. A pontuação da escola foi 554,05 pontos superior à média das escolas com nível socioeconômico mais alto do Brasil, que foi de 535,98 pontos. Atualmente, além do Chico Anysio, a iniciativa está implementada em cerca de 40 escolas fluminenses e, neste ano, expandiu-se para Santa Catarina, onde 15 escolas já adotam o programa.
Uma avaliação de impacto feita a partir dos resultados de aprendizagem alcançados pelo colégio mostrou que, se o C.E. Chico Anysio fosse o padrão em todo o país, o Brasil saltaria da 69ª posição para a 38ª posição no ranking internacional do Pisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e ficaria à frente de países como Estados Unidos (considerando ranking de matemática do Pisa 2015, divulgado em dezembro).
Brasil tem agenda de eventos sobre a disciplina
Há esforços importantes. Além da consolidação da OBMEP, que chegou a sua 13ª edição neste ano com 18 milhões de inscritos e abriu a participação para a rede privada, no ano passado, o Congresso aprovou a Lei Ordinária 13.358 que institui o Biênio da Matemática Brasil, que trará para o país, em 2017 e 2018, dois grandes eventos internacionais sobre o tema: a Olimpíada Internacional da Matemática (IMO 2017), em julho, e o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM) 2018, ambos no Rio de Janeiro.
A proposta da iniciativa é popularizar o estudo da matemática e trazer experiências e descobertas que estimulem o aprendizado e o interesse pela disciplina.
– O que está nos faltando é tomar alguma atitude diante dos dados dessas avaliações. Os pontos fracos já foram identificados, agora, precisamos valorizar a educação suficientemente como fizeram outros países, para torná-la uma prioridade – aposta Viana.