As crianças deveriam ter mais lição de casa? Não é incomum pais responderem sim a essa pergunta, afinal, fazer o dever, pelo menos para o senso comum, seria um dos caminhos para um bom desempenho escolar. Mas um movimento que já assumiu relevância nos Estados Unidos e em países da Europa contraria a ideia do tema de casa e quer até mesmo a sua extinção.
Educadores, pedagogos e pais ouvidos por Zero Hora afirmam enxergar o dever como um estímulo para a autonomia dos estudantes. Especialistas de opinião contrária sustentam que a prática desestimula os alunos e causa conflito entre as famílias. Pais que se mostram exaustos após um dia de trabalho e crianças cansadas teriam mais uma tarefa a cumprir na lista de obrigações.
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O Brasil está no final do ranking quando o assunto é tempo gasto em lição de casa por adolescentes de 15 anos. A média do país é de 3,3 horas por semana, pouco menos do que o Japão, com 3,8, e muito abaixo dos Estados Unidos, com 6,1. A Finlândia, cujo sistema educacional se sobressai em avaliações internacionais, é o último da lista, com 2,8 horas por semana. A China está em primeiro, com 13,8 horas semanais, segundo os indicadores de 2012 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Recentemente, o bilhete de uma professora de 2º ano primário no Estado americano do Texas viralizou por comunicar aos pais que os alunos não teriam mais dever. "Pesquisas não comprovam que lição de casa melhora o desempenho de estudantes... Jantem em família, leiam juntos, brinquem lá fora e levem seu filho para cama mais cedo", escreveu a docente.
– É difícil até mesmo questionar o tema de casa. Os professores teriam de revisar suas abordagens educativas se não dessem mais lição. E os pais teriam de aprender que não podem contar com o dever de casa como se fosse uma babá – comenta, por e-mail, a autora do livro The end of homework (O fim do tema de casa, em tradução para o português), Etta Kralovec, uma das defensoras mais árduas da extinção dessa tarefa extraclasse.
Em pesquisa feita pela Universidade de Stanford em 2014, apenas 1% dos alunos de Ensino Médio consultados disseram que o tema de casa não era um fator de estresse. Em comunidades em que o desempenho acadêmico é valorizado, os alunos, em média, recebiam mais de três horas de tarefa por dia. Segundo os pesquisadores que comandaram o estudo, mais de duas horas já causariam impactos negativos no comportamento e no bem-estar.
– Minha filha tem tarefa todos os dias e mais o reforço escolar. Tive de tirá-la da ginástica. Ela fica nervosa para completar tudo, eles precisam de tempo para serem crianças – desabafa a auxiliar de saúde bucal Leticia Hartmann, 32 anos, mãe de Giovanna, nove anos, aluna de uma tradicional escola de classe média-alta da Capital.
Etta, professora da Universidade do Arizona, argumenta que estudos mostram que a lição não melhora o desempenho escolar. Para crianças no Ensino Fundamental, o trabalho de aula, se bem aproveitado, seria o suficiente para uma boa aprendizagem. Em uma temporada de estudos no Zimbábue, ela viu que a situação não se limitava às crianças americanas, cujo dia escolar é mais longo.
– Crianças pobres não têm os recursos em casa para fazer a lição, e as ricas, outras atividades depois da escola que são também enriquecedoras e que disputam o tempo com os temas – ressalta Etta.
De acordo com a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Tânia Ramos Fortuna, a questão da lição é ampla. O dever pode ser considerado benéfico quando os alunos encontram sentido em realizar determinada tarefa:
– O tema de casa traduz essa ideia de que há uma relação da escola com a vida fora dela. Esse é um lado positivo da lição.
Além disso, as tarefas seriam como uma extensão da vida escolar, opina Claudia Marzano, orientadora educacional da Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriel Obino, no bairro Glória, na Capital. Segundo a educadora, também seria na hora da tarefa de casa, sozinhos, que os alunos teriam mais clareza sobre os próprios obstáculos de aprendizagem:
– Não é largar a mochila em casa e pegar só no outro dia. Em sala de aula, os colegas ajudam uns aos outros. Mas é em casa que eles vão saber onde há dificuldades e trazer para o professor no outro dia.
Pais poderiam incentivar outras práticas fora da aula
Professora da Faculdade Educação da UFRGS, Natália Gil orientou uma pesquisa sobre lição de casa em 2015 e defende que o tema não deve ser usado para suprir uma carência escolar, já que as crianças têm rotinas familiares diferentes. Para Natália, alunos mais vulneráveis não teriam o apoio dos pais nem as condições de estudo necessárias. Já as crianças com famílias mais presentes poderiam utilizar o tempo para aprender de maneiras mais individualizadas, e não repetir o que já é feito na escola.
– Uma criança que não aprendeu a ler na escola raramente vai aprender com pais que tiveram pouca escolaridade. Há famílias que têm internet, outras que não têm nem ao menos livros. Não acho que é papel da escola dizer como as famílias devem se organizar – afirma Natália.
Claudia Kober de Araujo, 43 anos, acompanha de perto a rotina dos dois filhos, Henrique, 13 anos, e Erick, 11. Na casa do bairro Cascata, em Porto Alegre, a mesa da sala de jantar da professora de anos iniciais da Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriel Obino é o lugar dos estudos. O primogênito não traz mais lição de casa, mas é um dos alunos de maior dedicação da turma em que estuda do 8º ano: os professores o conhecem pelas boas notas. O mais novo ainda faz os temas com a ajuda da mãe.
– Acho até que a escola poderia puxar mais, com mais tema de casa – diz Claudia.
Natália e Etta não são contrárias ao estudo fora de sala de aula, mas defendem que a didática do ambiente escolar não invada o espaço das atividades propostas pelas famílias. O ideal seria que os pais incentivassem outras práticas. A leitura por meio de maneiras diferentes das trabalhadas em aulas seria benéfico, afirmam.
– A lição de casa é quase sempre a parte menos instigante, não é uma aprendizagem nova. Não é fora da escola, de modos desiguais, sem os espaços propícios, que o aprendizado vai acontecer. Se o gosto pelo estudo se constrói na escola, em casa, ela (a criança) vai desenvolvendo as próprias práticas – acredita Natália.
Para Etta, a compreensão dos professores que levam em consideração a vida dos alunos fora do ambiente escolar para atribuir tarefas também não é suficiente.
– Uma criança pode levar 15 minutos para fazer uma lição de casa, outra pode levar 30 minutos para a mesma lição. Não é a quantidade dada, mas a presença constante daquela obrigação.
É difícil se concentrar em qualquer outra coisa se há uma lição de casa de "20 minutos" esperando para ser feita – comenta Etta.
Como o tema se relaciona à construção da autonomia
Em um grupo de nove alunos do 3º ao 6º ano da escola Província de São Pedro, instituição privada no bairro Boa Vista, todos dizem que fazem as lições sozinhos. Na hora da lição de casa, perguntas para os pais são raras. A eles, fica a tarefa de supervisionar, já que os professores estão, por meio de um aplicativo, conectados aos alunos para responder dúvidas.
O aluno Caio, 11 anos, tem em casa uma sala com computador, tablet e mesa para a lição de casa.
– Essa é a única responsabilidade dele, e ele tem tempo livre depois para fazer o que gosta – conta a mãe, Grace Correa.
Para Luciane Freitas, professora de matemática na escola, o método da lição de casa é instigante e ajuda a desenvolver a autonomia:
– O tema precisa ser para complementar e ajudar a fixar o material. São pequenos exercícios, alguns até terminam a própria tarefa em sala de aula ou vão além.
O caminho para a construção da responsabilidade e da autonomia seria o contrário, diz Natália Gil:
– Nada obrigatório gera autonomia, que se desenvolve quando há sentido e vontade de estudar porque algo instigou isso. O problema não é o conteúdo escolar, mas dar a liberdade e a autonomia para o aluno escolher e investir em outros elementos.