Em uma ilha repleta de geleiras, fiordes e elefantes marinhos, a Rússia construiu a primeira igreja ortodoxa da Antártica em uma montanha com vista para a base de pesquisa, trazendo toda a madeira para a construção da Sibéria. A menos de uma hora de viagem de trenó motorizado, trabalhadores chineses reformaram a Estação da Grande Muralha, um dos pilares no plano chinês de operar cinco bases na Antártica, incluindo uma quadra fechada de badminton, domos para proteger estações de satélite e alojamentos para 150 pessoas.
Sem medo da competição, a base futurística de Bharathi, construída pela Índia a partir de 134 contêineres de navio interligados, parece-se com uma nave espacial. A Turquia e o Irã também anunciaram planos de construir bases na região.
Obra de reconstrução da Estação Antártica Comandante Ferraz deve começar em janeiro
Mais de um século se passou desde que os exploradores hastearam suas bandeiras no final do planeta e, nas próximas décadas, esse continente promete ser convertido em uma reserva científica, onde atividades militares e de mineração serão proibidas.
Contudo, diversos países correm para garantir uma maior influência sobre a região, de olho não apenas no final desses tratados de proteção, mas também nas oportunidades estratégicas e comerciais que existem neste momento.
- Novos países estão se envolvendo no que veem como uma arca do tesouro de recursos naturais - afirmou Anne-Marie Brady, pesquisadora da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, especializada na política da Antártica.
Alguns dos investimentos se concentram nos recursos que já estão à disposição dos exploradores da Antártica, incluindo os abundantes animais marinhos. A China e a Coreia do Sul, que operam bases de última geração no continente, estão pescando cada vez mais krill, crustáceos parecidos com camarões encontrados em abundância no Oceano Austral, ao passo que a Rússia acaba de impedir a criação de um dos maiores santuários marinhos do mundo na região.
Alguns cientistas examinam a possibilidade de extrair água dos icebergs, que compõem a maior reserva de água doce do planeta. Os países também estão desenvolvendo projetos de pesquisa aeroespacial e de satélite com o objetivo de expandir sua capacidade de navegação global.
Uma jornada pela vida animal na Antártica
Construindo a partir das bases soviéticas, a Rússia está expandindo suas estações de monitoramento da Glonass, a versão russa do GPS. Ao menos três estações russas já estão em operação na Antártica, como parte da iniciativa do país de concorrer com a dominância do GPS norte-americano, e novas estações foram planejadas em locais como a base russa, que fica ao lado da Igreja Ortodoxa da Santíssima Trindade.
Em outras regiões da Antártica, os russos se gabam de terem descoberto reservas de água doce do tamanho do Lago Ontário, após escavarem por quilômetros de gelo.
- Você pode ver que viemos para ficar - afirmou Vladimir Cheberdak, 57 anos, chefe da Estação Bellingshausen, enquanto bebia chá sob um retrato de Fabian Gottlieb von Bellingshausen, oficial e almirante da Marinha Imperial Russa, que explorou a costa da Antártica em 1820.
As reservas minerais, petrolíferas e de gás natural são o prêmio de longo prazo. O tratado que impede a mineração no continente - protegendo minas de ferro, carvão mineral e cromo - deve chegar ao fim em 2048 e pode ser colocado em questão até antes disso. Os pesquisadores encontraram recentemente depósitos de kimberlita que indicam a existência de diamantes. E, embora as avaliações variem drasticamente, os geólogos estimam que a Antártica tenha ao menos 36 bilhões de barris de petróleo e gás natural.
Além dos tratados, existem obstáculos enormes que impedem a exploração desses recursos, como a deriva de icebergs que podem colocar em risco as plataformas petrolíferas. Além disso, a Antártica é bastante isolada e conta com depósitos de minerais espalhados por regiões distantes em um continente maior do que a Europa, onde as temperaturas chegam a 57 graus negativos no inverno.
Contudo, avanços na tecnologia podem tornar a Antártica muito mais acessível daqui a três décadas. E até antes disso, os cientistas tentam determinar se o aquecimento global pode facilitar o acesso a determinadas regiões, possivelmente desestabilizando a camada de gelo do continente ou deslocando as populações de krill do Oceano Austral.
Pressão para renegociar tratados pode aumentar
Os especialistas também destacam que a demanda por recursos em um mundo sedento por energia poderia aumentar a pressão para renegociar os tratados da Antártica, possibilitando o desenvolvimento de operações comerciais muito antes do final das proibições.
As estações de pesquisa na Ilha do Rei George oferecem indícios do futuro nesse continente coberto de gelo, à medida que os países se posicionam de forma mais assertiva e colocam em xeque os acordos financiados por países como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia.
Ficar na Antártica significa se habituar à vida no continente mais seco, frio e com os ventos mais fortes do planeta, ainda que cada país tente fazê-lo lembrar de sua terra natal.
Sacerdotes russos realizam cultos frequentes na igreja ortodoxa frequentada pelos cerca de 16 russos que passam o inverno na base, quase todos cientistas polares especializados em glaciologia e meteorologia. O número de especialistas chega a 40 nos meses de verão.
Empresa chinesa reconstruirá estação brasileira na Antártica
A China é, sem dúvida, a que expande mais rapidamente suas operações na Antártica. Os chineses abriram sua quarta estação em 2014 e já tem planos adiantados de construção de uma quinta. O país já está construindo seu segundo navio quebra-gelo e está instalando uma base de pesquisa em um domo de gelo a 4.091 quilômetros acima do nível do mar em um dos lugares mais frios do planeta.
As autoridades chinesas afirmam que sua expansão na Antártica prioriza a pesquisa científica, mas também reconhecem preocupações com a "segurança de recursos" em suas ações.
À medida que alguns países expandem suas operações na Antártica, os Estados Unidos mantêm três estações que operam o ano todo no continente e contam com mais de mil pessoas durante o verão no hemisfério sul, incluindo os especialistas da Estação Amundsen-Scott, construída em 1956, com uma elevação de 2.753 quilômetros, em um platô no Polo Sul. Contudo, os pesquisadores norte-americanos reclamam dos cortes de verbas e do acesso a muito menos navios quebra-gelo que os pesquisadores da Rússia, o que limita o alcance dos EUA na Antártica. Os especialistas alertam que o fluxo político da Antártica pode apagar a distinção entre atividades civis e militares muito antes que os tratados precisem ser renegociados, especialmente em partes do continente ideais para interceptar sinais de satélite, ou adaptar sistemas de satélite, o que poderia melhorar o alcance das operações de inteligência eletrônica.
Nova licitação para construção de estação brasileira na Antártica pode chegar a R$ 245,6 milhões
Alguns países enfrentam dificuldades na região. O Brasil abriu uma estação de pesquisa em 1984, que foi quase totalmente destruída por um incêndio que matou duas pessoas em 2012, o mesmo ano em que uma barcaça cheia de óleo diesel afundou perto da base. Se não fosse o bastante, um avião brasileiro de transporte militar C-130 Hercules continua na pista da base aérea chilena desde que se acidentou durante um pouso em 2014.
Ainda assim, essa falta de sorte criou oportunidades para a China e, em 2015, uma empresa chinesa faturou o contrato de US$100 milhões para reconstruir a estação brasileira.
Em meio a todas essas mudanças, a Antártica continua a ser um destino atraente. A Coreia do Sul abriu sua segunda base em 2014, descrevendo-a como uma forma de testar robôs desenvolvidos na Coreia para serem usados sob condições extremas. Com a ajuda da Rússia, Belarus está se preparando para construir sua primeira base na Antártica. Em 2015, a Colômbia também planejou se unir a outros países sul-americanos com bases no continente.
- Os velhos tempos em que a Antártica era dominada apenas pelos interesses e desejos dos europeus, australianos e norte-americanos acabaram. A realidade é que a Antártica é um continente geopoliticamente disputado - afirmou Klaus Dodds, pesquisador da Universidade de Londres, especializado na Antártica.