O satélite Aqua, da NASA, não deixou passar: tem uma mancha escura gigantesca, de cerca de 800 km de extensão, rondando uma faixa litorânea que desce do Rio de Janeiro até Santa Catarina. A imagem, capturada no último dia 19, mostra um aglomerado de microorganismos provavelmente da espécie Myrionecta rubra, um protista ciliado que vive de fotossíntese, depois de sequestrar cloroplastos de algas.
- Esse fenômeno já foi registrado em São Paulo no final dos anos 1990. Ele só acontece quando a temperatura da água está alta e o ar está calmo, com pouco vento. Assim, a espécie consegue se reproduzir e se acumular - explica Paulo Cesar Abreu, professor do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
De acordo com Abreu, pesquisadores de São Paulo estão coletando amostras para confirmar se o fenômeno é causado, de fato, pelos pequenos Myrionecta rubra, que não representam - até onde se sabe - perigo para animais marinhos nem humanos. Ainda assim, Abreu lembra que as mesmas condições que favorecem o aparecimento desses animais também podem trazer um vilão conhecido dos gaúchos: a cianobactéria, que produz toxinas.
- A temperatura do Atlântico Sul está muito acima do normal (chegando agora aos 30°C, número extremo para a época do ano), e isso pode levar à formação dessa mancha. Esses aumentos acontecem em todo o mundo e têm sido registrados principalmente na última década - alerta o professor, apontando para a relação direta entre a temperatura e o efeito estufa.
- Os efeitos não são apenas o aumento da temperatura. Invernos intensos são registrados agora no hemisfério norte, o que também faz parte dos modelos: o efeito estufa desequilibra todo o sistema, e acho que não há mais dúvidas de que existe influência humana sobre a temperatura dos oceanos - afirma, amparado pelas conclusões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, que aponta que as chances de o homem ter influência sobre o aquecimento global são de 95% e que esse aquecimento migrou recentemente dos continentes para as águas oceânicas.
De acordo com o oceanógrafo, os ciclones extratropicais nos litorais gaúcho e catarinense podem ser consequências que acompanham essas mudanças climáticas.
- Os registros que temos são bastante recentes, então esses fenômenos podem ter ocorrido outras vezes na história. Mas, no caso da temperatura, há dados que mostram recordes na última década, e não há dúvida de que isso está relacionado à emissão de gases do efeito estufa - diz Abreu.
O professor considera a possibilidade de a mancha "descer" para as praias do Rio Grande do Sul, mas destaca que as condições climáticas são diferentes.
- Não observamos formações com essa densidade, nunca vimos uma concentração como a que tem ali. Pode descer, até porque a corrente vem de norte para sul, mas essa mancha pode se desmanchar de uma hora para outra e, mais importante, ainda não confirmamos a espécie. Se for mesmo o que imaginamos, mesmo que venha para cá, não causará problema nenhum - indica.
Visto de perto, um aglomerado de Myrionecta rubra tem coloração vermelha, mas aparece escuro na imagem de satélite devido à absorção de luz por parte do oceano (essas pequenas criaturas costumam nadar um metro ou dois abaixo da superfície).