Um tabuleiro de Banco Imobiliário vem com casas imitando as fronteiras que costuramos no mundo. No jogo da propriedade, ganha quem tem o poder e os recursos para chegar primeiro, conquistar e manter o cercado. E se fizéssemos o mesmo com a Lua?
Um projeto de lei tramita desde julho no congresso americano pedindo que, do terreno onde pousou a Apollo 11 de Neil Armstrong, seja feito um parque nacional. Também em julho, foi anunciada a primeira missão para o polo sul da Lua, que será privada e vai com um olho no céu e outro no chão: a Associação do Observatório Internacional Lunar quer cravar um centro de pesquisas na superfície do satélite natural, e a empresa MoonExpress, que oferece tecnologia para a empreitada, vai aproveitar o ensejo para buscar minerais e água.
Falando em julho: foi o ciclo lunar que inspirou a invenção dos meses como os conhecemos. A Lua, eterna interlocutora de poetas, regente de marés, enfeite e farol gratuito do mundo todo, ainda guarda os seus mistérios. Estudos recentes a capacitam com a força de influir no sono e até em cirurgias cardíacas. A questão é que uma iniciativa como a do congresso americano parece deixar essa vocação democrática do "nosso" único satélite natural assim, entre aspas.
- Aquela conversa de "pequeno passo para o homem e um grande passo para a humanidade"... Se vê que o discurso deles é um, e a prática é outra - diz Délcio Basso, coordenador do Laboratório de Astronomia da PUCRS.
O projeto dos congressistas republicanos chegou pouco antes do novembro em que a Índia enviou missão a Marte e deste dezembro em que a China aterrissou sua primeira sonda na Lua. O receio é que o trânsito cada vez mais intenso nas vias lunares destrua o cenário pisoteado de rastros americanos. Mas há mais pinos nessa mesa. As rochas do astro são ricas em oxigênio, que pode ser usado para criar ambientes habitáveis e propulsores de foguetes. E isso custaria menos do que custa aqui.
- A Lua não tem atmosfera. É possível que uma máquina muito potente arremesse minérios em órbita. Seria apenas passar com uma nave e coletar esse material - explica Basso.
Uma escavada também pode acabar levantando titânio e Hélio-3. Raro aqui, ambundante lá, o Hélio-3 é candidato a combustível de reatores caso venhamos a dominar a fusão nuclear: e, aí, pode esperar energia limpa por séculos a fio.
ACHOU, LEVOU?
Ao comentar a cobiça por esses recursos, Naveen Jain, um dos fundadores da MoonExpress, comparou a Lua a águas internacionais e lembrou que ninguém torceu o nariz quando os EUA trouxeram algumas rochas de lá. Segundo ele, há precedente legal para que vigore o "achou-levou". Embora o terreno não seja da empresa, ela teria justa posse sobre o terreno que ela extrai. Será?
Há dois acordos internacionais que ditam as regras do jogo. O Acordo da Lua, aprovado na Assembleia Geral da ONU em 1979, está ratificado por apenas 15 países, nenhum com status de potência espacial. Amplamente aceito é o Tratado do Espaço, de 1967, que libera a exploração pacífica e cooperativa do cosmos e de corpos celestes como a Lua.
- "Exploração" quer dizer estudo, conhecimento, e não "exploração comercial" ou "exploração industrial". Para isso se emprega a expressão "explotação", e o termo "uso" só serve para atender às necessidades da missão; nada tem a ver com "achou-levou" - esclarece José Monserrat Filho, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial e Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial.
Embora definida como bem de "uso comum", a Lua não está sujeita à apropriação. Além disso, a exemplo da Antártica, os corpos celestes são considerados "zonas desmilitarizadas". Tudo bem, então, criar um sítio cultural em brinde à Apollo 11, contanto que o Tio Sam não reivindique posse sobre a área.
- Nada disso - frisa Monserrat - impede que a MoonExpress instale um observatório na Lua, para servir a pesquisadores e mapear minérios. O que não pode é explotá-los, nem se apossar de suas áreas.
Para o especialista, é preciso preencher a lacuna sobre o uso comercial da Lua antes que se comece a "explotá-la como se fosse um território sem lei".
- Alguma forma de regulação deverá se antecipar a qualquer projeto comercial ou industrial, no mínimo para evitar que a Lua seja utilizada irracionalmente, de modo não sustentável, e tenha seu meio ambiente afetado da mesma forma com que foi o nosso planeta - alerta Monserrat, emendando que "atos unilaterais não têm, nem podem ter, a menor validade quando se trata de uma questão que afeta todos os países".
A FÉRTIL CORRIDA ESPACIAL
Para alcançar os soviéticos na batalha cósmica, os Estados Unidos colocaram US$ 20 bilhões no programa Apollo. O dinheiro foi para o espaço? Não exatamente. São milhares as tecnologias que, surgidas nos laboratórios das agências espaciais, acabaram na nossa rotina. As fraldas descartáveis de hoje devem muito à preocupação com os excrementos dos astronautas. A corrida espacial inventou a pasta de dente comestível, o tecido não-inflamável e a comida desidratada. Não precisamos ir longe nem voltar à Guerra Fria. No Centro de Microgravidade (Microg) da PUCRS, surgiu um coletor de sangue que "morde" o lóbulo da orelha e lê, na hora, o pH e a densidade de gases na amostra sanguínea.
- O projeto foi validado em Terra, inclusive em uso hospitalar, e recebeu duas patentes internacionais (Europa e EUA) - diz Thais Russomano, coordenadora do Centro.
Imaginando como seria uma massagem cardíaca na Lua, os pesquisadores do Microg também bolaram uma técnica que pode ajudar por aqui, em casos de desproporção de peso entre a vítima e o socorrista. Fazer ciência na Lua pode até acabar proveitoso quando a vítima em potencial for toda a humanidade.
- Como lá praticamente não tem ruído, um rádio-telescópio seria útil para detectar eventuais asteroides que estejam a caminho da Terra - diz Délcio Basso.