O Rio Grande do Sul registrou 138 ocorrências envolvendo bullying e cyberbullying entre março, quando os casos começaram a ser contabilizados pela Polícia Civil, e julho de 2024. As práticas se tornaram crime a partir de uma lei federal sancionada em janeiro deste ano.
No período, foram 29 boletins de ocorrência por cyberbullying e 109 por bullying. As situações foram separadas por terem tipificações e penalizações diferentes.
— A conduta do cyberbullying incorpora a do bullying, pois só se estende da prática do dia a dia para as redes sociais. A não ser, lógico, que o bullying venha associado com outras práticas, como lesão corporal ou preconceito racial. Aí, será considerado o bullying, o preconceito, a lesão, mais o cyberbullying, todos ao mesmo tempo — aponta o chefe da Polícia Civil no RS, Fernando Sodré.
O registro da ocorrência pode ser feito em qualquer delegacia de pronto-atendimento e de forma online. O delegado tipifica o caso e, se for registrado como bullying ou cyberbullying, é encaminhado ao Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca). Se houver outros crimes associados, o registro é repassado também à Delegacia de Combate à Intolerância.
Conforme a promotora Cinara Dutra Braga, em termos técnicos, o tratamento jurídico após a fase criminal será diferente de acordo com a idade do autor.
— Crianças de zero a 12 anos incompletos não respondem por crime ou contravenção penal. Já quando a gente trata de adolescente, de 12 a 18 anos incompletos, chamamos de ato infracional. O adolescente que o comete não recebe pena, mas uma medida socioeducativa — explica.
Por esse motivo, a responsabilidade diante do crime pode ser endereçada aos responsáveis do infrator ou à instituição, como a escola onde o fato aconteceu. Cada caso dependerá do contexto em que ocorreu e a investigação poderá apontar uma rede de responsabilidades por parte de quem descuida ou silencia diante dos crimes.
No momento em que se tipifica e criminaliza, se coloca essa responsabilidade, não só sobre as pessoas, mas também sobre instituições. Isso vale tanto para gestões escolares, quanto para os provedores de conteúdo nas mídias sociais. Esses territórios, sejam eles físicos ou digitais, não podem seguir existindo à margem da lei do processo civilizador.
DANIEL LOPES
Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Informática na Educação da UFRGS
Depois do registro e da investigação, há o processo jurídico que costuma ser acompanhado pela Defensoria Pública do Estado (DPE). Segundo a dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da DPE, Paula Simões, a maioria dos processos tem sido resolvida na primeira audiência.
— Dependendo da gravidade, é possível que o juiz ofereça o que se chama de "remissão", como se fosse um perdão que pode ou não estar acompanhado de uma medida como prestação de serviços à comunidade ou de liberdade assistida. Em muitos casos é acompanhada apenas de uma mera advertência — afirma a defensora Paula.
Crescimento de casos
Antes da lei, até o ano passado, casos desse tipo eram registrados apenas em cartório. Dados do Colégio Notarial do Brasil apontaram que 2023 teve o maior número de atas que relatavam episódios de bullying e cyberbullying no Brasil. Foram 121 mil casos. Na média histórica, esse total vinha aumentando ano a ano desde 2020.
Uma dessas histórias foi a de Laura, de nove anos, filha da gerente de relacionamento Fabiane Santos, de 34 anos, moradora de Porto Alegre. Na época, a menina sofria agressões físicas e verbais de uma colega mais velha.
— Eu fui descobrir só por causa do hematoma. Entrei no banheiro pra entregar a toalha pra ela, vi aquilo e ela acabou me contando. Eu acionei o conselho tutelar e fiz boletim de ocorrência por agressão e ameaça psicológica.
Fabiane reclama que precisou buscar ajuda sozinha e que não teve respaldo da escola naquele momento. Ela acredita que, com a possibilidade de levar os relatos à polícia, seja feita a responsabilização:
— Com certeza esse é o caminho, porque o maior impasse era conseguir falar com a responsável. Fui em todas as reuniões escolares e nunca consegui encontrar a mãe dessa menina. Hoje, com certeza, eu faria a denúncia. Na época, eu me senti muito impotente.
Prevenção
Fabiane buscou tratamento para Laura com a psicopedagoga Pamela Dutra. Ela explica que o fato da mãe ter descoberto a agressão sem que a filha relatasse é algo muito comum em casos de bullying, uma vez que nem sempre a criança que sofre e até mesmo a que comete o ato têm consciência do que se trata.
— Por mais que isso se torne uma lei, as crianças e os adolescentes acabam não tendo conhecimento e continuam praticando. Então, é muito importante a prevenção não só dentro das escolas, mas também dentro do núcleo familiar, das crianças entenderem os impactos que o bullying tem a curto e a longo prazo, e quais são as consequências para quem pratica ou sofre – diz Pamela.
A psicopedagoga enfatiza que o trabalho preventivo seja feito em ações contínuas e que não só os alunos recebam orientação, mas também os pais e profissionais das escolas.
A Polícia Civil inseriu o tema nas visitas às escolas no Papo de Responsa, desenvolvido desde outubro de 2016. A ideia é propor um diálogo aproximado com alunos do ensino Fundamental e Médio em instituições públicas ou privadas. Na conversa, é abordada a prevenção à violência escolar.
No primeiro semestre de 2024, foram realizadas 306 edições do programa, sendo que 216 foram sobre bullying. A Polícia Civil estima que 24.523 pessoas foram alcançadas em 80 cidades do Estado.
— Essa temática nos grandes centros é a mais abordada. A nossa ideia é que essa informação chegue também nos municípios menores. A Defensoria Pública entende que a responsabilização é importante, mas quando se fala em jovens, é muito mais importante que a gente eduque do que venha a punir — estima a defensora Paula.
Questionada pela reportagem de Zero Hora, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) informou que “acompanha diariamente as possíveis denúncias, com orientações relacionadas aos temas nas escolas” e que “dá suporte psicossocial aos envolvidos e comunidade escolar, além de realizar encaminhamentos à rede de apoio necessária”.
Balanço dos dados no Estado
A expectativa das autoridades é que o número de registros deva seguir uma tendência de alta nos próximos meses, à medida que as pessoas tomam conhecimento sobre a possibilidade de fazer o boletim desse tipo. Por outro lado, em um segundo momento, a Polícia Civil espera que a situação se amenize a partir do acompanhamento, da penalização e da conscientização sobre o crime.
Como não há índices anteriores, ainda não é possível estabelecer comparações. O professor Lopes conclui que a análise ainda levará algum tempo:
— Não tem como a gente saber se o efeito da lei em si já estaria coibindo esse tipo de crime de alguma forma. Então, uma primeira impressão que me passa, é que a gente ainda precisa mais tempo e ver também outros movimentos que a própria lei induz, em termos de políticas públicas, para saber como isso vai incidir, de fato, no contexto do Estado.
Confira a nota da Seduc na íntegra:
A Secretaria da Educação, por meio do Núcleo de Cuidado e Bem-Estar Escolar, têm atuado diretamente nas escolas com equipes de assistentes sociais e psicólogos, bem como coordena o Programa CIPAVE+, que apoia e dá suporte psicossocial aos envolvidos e à comunidade escolar, além de realizar, junto a escola, os encaminhamentos à rede de apoio necessários. As ações que acontecem logo após as situações de violência são extremamente importantes para amenizar os possíveis traumas sofridos pelos envolvidos e para resgatar a escola como um espaço seguro e de cuidado para a comunidade escolar.
Também, a partir da Assessoria de Integridade e Atendimento ao Cidadão - ASIAC, a Secretaria atua a partir da implantação de protocolos de Paz e Segurança nas Escolas, com orientação, prevenção e combate às violência. Além disso, a Secretaria acompanha diariamente as possíveis denúncias, com orientações relacionadas aos temas nas escolas.